O novo pensamento coletivo é obedientemente praticado já quase sem reflexão, como uma segunda natureza que se vai alargando a cada dia que passa. Artigo do professor Paulo Tunhas, publicado pelo Observador:
Às
vezes, vale a pena voltar atrás no tempo para pensar os dias de hoje.
Não para mostrar que lá tudo já estava em germe, contendo em si o
princípio de um desenvolvimento necessário, mas para descobrir, mais
modestamente, a coerência entre o passado e o presente, tão mais fácil
de se obter quando o passado é um passado relativamente próximo de nós. O
artigo de hoje é dedicado a esse exercício.
O
nosso século começou, para efeitos práticos, com o 11 de Setembro de
2001. Quer dizer: com a demonstração plena e inteira da barbárie
islamista. É claro que a barbárie vinha de trás e muita gente, sobretudo
depois do apelo à morte de Salman Rushdie, em 1989, pelo Ayatollah
Khomeini, sob a acusação de blasfémia contra o Islão, foi sensível à
evidência da incompatibilidade dos modos de viver islamista e ocidental,
algo que saltava aos olhos. É claro que o saber-se isso não diminuiu em
nada a surpresa pelo ataque bem sucedido a Nova Iorque e ao Pentágono e
falhado, graças ao heroísmo dos passageiros do avião, à Casa Branca. Em
contrapartida, já não houve surpresa alguma – apenas choque – com os
ataques de Londres, Madrid, ou qualquer um que tenha tido lugar nos
tempos consecutivos. Dos que ocorrem hoje em dia – particularmente em
França, que se revelou um alvo muito apetecível para o islamismo – o
melhor é nem falar: até porque, de facto, tirando um caso ou outro,
praticamente já não se fala deles. Tornaram-se numa coisa normal. Nem
choque provocam, quanto mais surpresa.
Dois
comentários merecem ser feitos. Primeiro, e contrariamente à lenda, a
reacção nos países ocidentais ao 11 de Setembro não foi a de um horror
unânime. Os festejos não se limitaram à célebre “rua árabe”, houve
festejos também por essa Europa fora e por gente que de árabe não tinha
nada. Contava neles sobretudo o velho ódio aos Estados Unidos e,
indirectamente, o mais recente, mas muito bem consolidado, ódio a
Israel. Sobretudo, as declarações de solidariedade com os Estados Unidos
– género “Somos todos americanos”, um género horrendo que conheceu
indesmentível fortuna – traziam já em si, mais ou menos subreptícia, uma
lista muito extensa de cláusulas e cláusulasinhas que só aumentaram com
o tempo. Aconselho quem tenha dúvidas na matéria a ir ler o que se
escrevia na altura.
Em
segundo lugar, veio à tona, com grande intensidade, um ódio a si mesmo
do Ocidente, que se declina de várias maneiras que, por simplicidade,
podemos reunir numa só: o Ocidente é, por definição, opressivo e
culpado, em contraste com a inocência radical dos povos com que, ao
longo dos tempos, entrou em contacto. Esta visão das coisas dá voz a um
hipercriticismo que corresponde a uma perversão da tradição crítica
ocidental que se inicia com os Gregos. E tal hipercriticismo, que se
afasta decisivamente de uma concepção do progresso do melhor viver que
partilhavam, cada uma a seu modo, a esquerda e a direita, conduz
directamente ao suicídio ideológico das nossas sociedades. Que esse
suicídio venha trajado com as belas vestes do respeito pelas diferenças e
pelo outro não muda nada no que respeita ao seu letal efeito. Porque o
respeito pelo outro, que a tradição crítica sempre fomentou, só é
valioso se for acompanhado pelo respeito por nós mesmos. De facto, o
respeito pelo outro, se é alguma coisa, é uma manifestação essencial do
respeito por nós mesmos. Só nos respeitamos a nós mesmos respeitando o
outro. Aquilo a que o suicídio ideológico do hipercriticismo nos conduz é
à pura e simples falta de respeito, explícita por relação a nós mesmos e
implícita por relação ao outro.
O
pós-11 de Setembro, no interior do qual vivemos, só acentuou este
estado de coisas. Olhe-se para onde se olhar, vemos o suicídio
ideológico em acção. Todos os problemas, reais ou imaginários, são
vistos como prova conclusiva da nossa culpa original e originária. Uma
parte substancial da vastíssima literatura sobre as “alterações
climáticas”, por exemplo, preocupa-se muito menos com a discussão dos
problemas complexos que a questão coloca – tão mais complexos quanto os
seus contornos são muito mais imprecisos do que normalmente se pretende –
do que com a exposição dos malefícios da cultura ocidental, seja sob a
forma da crítica do capitalismo, seja sob o modo de uma denúncia da
arrogância subentendida pelo nosso modo de viver.
A
chamada “cultura do cancelamento” é um outro exemplo. Tudo o que surja,
por mais vagamente que seja, como algo que possa ferir o quase
divinizado outro deve imperativamente ser silenciado. O outro é
divinizado no presente e no passado, como uma entidade que foi objecto
dos nossos cruéis rituais sacrificiais. Mais uma vez é esquecido o
esforço secular da tradição crítica ocidental na exposição da injustiça e
da crueldade. De facto, essa própria tradição é vista como uma forma
particularmente subtil e insidiosa de perpetuar a opressão. A tese do
chamado “racismo sistémico” vai exactamente nesse sentido. É o passado
como um todo que deve ser abolido, já que ele não exprime senão
opressão. Não há criação nossa no passado, ou, melhor: o que passa por
criação – política, artística, científica – não é, se exceptuarmos
aquela que é atribuída ao outro (diferentemente definido segundo as
circunstâncias e o momentâneo interesse), senão um artifício gerado pela
opressão. Obviamente, a abolição do passado é uma condição
indispensável para o cancelamento de tudo o que, no presente, não
obedeça ao princípio da divinização do outro. O passado, desde que não
concebido como uma totalidade maciça de opressão, corre o risco de
ameaçar as nossas certezas e de relativizar as nossas crenças. Isto é:
de nos fazer hesitar perante o suicídio ideológico.
Não
pretendo que a divinização do outro e aquilo que chamei “suicídio
ideológico” se tenham iniciado com o pós-11 de Setembro. Digo apenas que
recebeu daí um extraordinário ímpeto e que o processo assim engendrado
se multiplicou em todas as direcções, sem que se possa conceber qualquer
princípio de auto-limitação nesse sistema de pensamento. O ridículo e o
grotesco infiltraram as nossas crenças do dia-a-dia. E, mesmo que se
procure vesti-las com vagas referências à tradição de auto-determinação e
de liberdade crítica que, por mais penosas que tenham sido a sua
aquisição e a sua defesa, são fundadoras da nossa cultura, qualquer
tentativa de estabelecer uma continuidade entre essa tradição e o
momento presente esbarra contra evidências brutas e indisputáveis. Uma
atitude está nos antípodas da outra. O que está, entre outras coisas, em
jogo, é a nossa liberdade de expressão, ou, talvez seja melhor dizer
assim, o nosso direito ao discurso livre.
O
que há de particularmente opressivo em tudo isto, que marca de forma
clara o nosso presente, é o caracter praticamente compulsivo das novas
crenças. Fui muito parco na lista de exemplos, que poderia prolongar
quase indefinidamente, adivinhando até, sem precisar de muita
imaginação, novos exemplos que, mais cedo ou mais tarde, surgirão. Mas o
novo pensamento colectivo é obedientemente praticado já quase sem
reflexão, como uma segunda natureza que se vai alargando a cada dia que
passa. O suicídio ideológico é um processo em curso, facilitado pela
ignorância e pelo sentimento de superioridade moral daqueles que, à
espera da redenção, se sacrificam aos presumidos eternamente
sacrificados. A quem não tenha paciência para ler livros, basta-lhe
abrir um jornal ou ver televisão: está, quase infalivelmente, tudo lá,
sob a forma de ordens invisíveis sobre a maneira como devemos pensar.
PS.:
Depois de muitos outros, é a minha vez de elogiar Sérgio Sousa Pinto
pela sua coragem em resistir às vozes de censura que, de muitos cantos,
se levantaram contra ele. Pode não ser evidente, mas tem tudo a ver com a
substância principal deste artigo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário