O criador da Irmandade Muçulmana baseou sua visão do Islã como um modo total de vida no antigo wahabismo, uma tradição de interpretação fundamentalista do Corão. Flavio Gordon para a Gazeta do Povo:
No
artigo da semana passada, vimos exemplos de viés anti-israelense e
islamófilo da imprensa. Dentre eles, uma coluna de Fernando de Barros e
Silva na Folha de S.Paulo, na qual se afirmava o caráter
majoritariamente moderado da Irmandade Muçulmana, e uma matéria de O
Globo, informando que, no presente, essa organização tornara-se laica.
Ao fim do texto, escrevi que “nossos formadores de opinião reproduzem,
inseguros, tudo o que leem na grande imprensa internacional”, que, por
sua vez, “é pautada por facções intelectuais que convém conhecer”.
Acerca
do caráter moderado, laico e democrático da Irmandade Muçulmana, em
particular, a origem dessa narrativa não é difícil traçar. Nossos
replicadores colheram-na nos grandes jornais norte-americanos e
europeus, tais como New York Times e The Guardian. Estes, por sua vez,
colheram-na prontinha num artigo publicado em 2007 na Foreign Affairs,
revista oficial do Council of Foreign Relations (CFR), o mais poderoso
think tank globalista. Que, a propósito, o leitor da Gazeta esteja
ciente: hoje, boa parte das ideias hegemônicas em circulação no mercado
mundial de opiniões públicas nasce do CFR.
Intitulado
“The Moderate Muslim Brotherhood”, e coautorado por Robert S. Leiken e
Steven Brooke, afirmava que a organização islâmica abandonara
definitivamente o seu passado fundamentalista e que, não sendo mais um
bloco monolítico, estaria plenamente capacitada ao diálogo e cooperação
com o Ocidente. Nas palavras dos autores: “A Irmandade é uma coleção de
grupos nacionais com diferentes características, e as várias facções
discordam sobre a melhor maneira de conduzir sua missão. Mas todas
rejeitam a jihad global, ao mesmo tempo em que encampam as eleições e
outros elementos da democracia”.
Tratava-se
de uma curiosa tentativa de tornar mainstream a Irmandade Muçulmana,
sobretudo se lembrarmos que, no mesmo ano da publicação do artigo, o
então líder da organização islâmica, Mohammed Akef, fizera comentários
nada pacíficos sobre o conflito entre Israel e o Hezbollah no Líbano.
Akef foi não apenas um dos primeiros líderes no Oriente Médio a
congratular o grupo terrorista por ter violado as fronteiras e capturado
dois soldados israelenses, como também se dispôs a oferecer 10 mil
jihadistas para auxiliar na luta contra as forças israelenses. Quando as
demais lideranças árabes não seguiram sua proposta, ele declarou (de
maneira muito moderada, como se pode notar): “Se não fossem muçulmanos,
já os teríamos matado, porque são uma maior ameaça à nação do que
Israel”.
Mas
não é difícil compreender por que o CFR queira dourar a pílula de uma
organização como a Irmandade Muçulmana, uma vez que, no contexto do
projeto globalista, é sempre bem-vindo qualquer enfraquecimento da
posição geopolítica americana e israelense, sendo EUA e Israel as duas
maiores, se não únicas, nações soberanas do bloco ocidental. Ocorre que,
para emplacar essa narrativa, o think tank teve de se empenhar numa
vasta campanha de desinformação e propaganda, porque nada na história da
Irmandade Muçulmana sugere uma postura moderada e uma disposição para o
diálogo. Recorde-se, antes de tudo, que Mustafa Mashhur, principal
líder da Irmandade no Egito entre 1996 e 2002, é autor de A Jihad é o
caminho, obra na qual se explicita o programa básico da organização, que
inclui itens como a criação de um Estado islâmico, a dominação mundial
pelo Islã, a necessidade da jihad contra os infiéis (rótulo que não
inclui apenas Israel, mas o Ocidente como um todo), e a importância de
não desistir até que um califado universal seja imposto.
A
Irmandade Muçulmana (cujo lema é “Alá é o nosso objetivo. O profeta é
nosso líder. O Corão é nossa lei. A Jihad é nosso método. Morrer em nome
de Alá é nossa maior esperança”) surge em 1928, idealizada por Hassan
al-Banna, jovem professor de 22 anos de idade, simpatizante do nazismo. A
organização nasce como movimento revivalista islâmico, na esteira da
queda do Império Otomano e da consequente extinção do califado como
sistema de governo que unificara os muçulmanos ao longo de quatro
séculos. Al-Banna baseou sua visão do Islã como um modo total de vida –
mais do que simplesmente uma orientação religiosa – no antigo wahabismo,
uma tradição de interpretação fundamentalista do Corão, surgida no
século 18 pelas mãos de Mohammad Ibn Abdul al-Wahhab. Segundo essa
vertente, qualquer ensinamento acrescido ao Islã após o século 10.º era
considerado falso. Os wahabistas vislumbravam um império islâmico
liderado por homens santos, guiados exclusivamente pela pura lei
islâmica (shari’a). Por esse motivo, passaram a ser chamados de
“fundamentalistas islâmicos”, constituindo o protótipo do que hoje se
entende por essa expressão.
Desde
o início, o wahabismo justificava o uso da violência contra elementos
não islâmicos no mundo árabe. Na década de 1920, a Muttawa, polícia
religiosa do movimento, promoveu o terror em cidades sauditas. Igrejas,
sinagogas e quaisquer locais não islâmicos de culto foram incendiados e,
mais tarde, proibidos. A partir de então, o wahabismo foi se
radicalizando cada vez mais. Naquele período, a Arábia Saudita acabara
de descobrir suas principais reservas de petróleo e começou a fazer
negócios com o mundo não islâmico, sobretudo com os EUA. Essa situação
provocou a revolta dos wahabistas, logo reprimida com violência pelo
governo saudita, o que fez com que vários militantes do movimento
fugissem para outras regiões, especialmente o Egito.
Ali,
o wahabismo reestruturou-se sob o guarda-chuva da Irmandade Muçulmana.
Graças à atuação de líderes como Amin al-Husseini (“o grande mufti de
Jerusalém”), a organização espalhou-se para outras partes do mundo
islâmico, notadamente a Palestina, vindo a tornar-se a principal
fomentadora de grupos terroristas como o Hamas e a Jihad Islâmica. Como
mostrei em artigo anterior, Husseini foi um aliado de Hitler na Segunda
Guerra, o grande responsável por importar para o Oriente Médio o modus
operandi nazista, tendo, inclusive, organizado tropas nazi-islâmicas
(segundo ele, “a nata do Islã”) e participado ativamente do extermínio
de judeus. Yasser Arafat, aos 17 anos, entrou na Irmandade Muçulmana sob
a sua tutela.
Mas
a grande figura da Irmandade Muçulmana é, inegavelmente, Sayyid Qutb
(1906-1966), brilhante pensador egípcio e principal mentor intelectual
da moderna jihad. Qutb exerceu forte influência espiritual e intelectual
sobre líderes terroristas como Ayman al-Zawahiri e Osama bin Laden. E
quem quer que conheça minimamente o seu pensamento há de encarar com
ceticismo qualquer sugestão de moderação ou laicidade da organização
islâmica. Falaremos mais sobre isso no próximo artigo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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