MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

terça-feira, 27 de abril de 2021

O Oscar da problematização

 



Na cerimônia mais tediosa de todos os tempos, o cinema foi substituído por discursos políticos e futilidades sem o glamour de Hollywood, segundo Kyle Smith, crítico cultural da National Review, em artigo traduzido para a Gazeta do Povo:


Um dos Oscars dado na noite de domingo (25) foi para o curta-metragem Dois Estranhos, sobre um negro que é repetidamente morto pela polícia. É O Dia da Marmota do Black Lives Matter. O Dia da Marmota realmente funciona como metáfora para o ano passado, certo? É quase como se o despertador toasse todas as manhãs, Sonny e Cher cantassem e as pessoas simplesmente... continuassem falando sobre as mesmas coisas. Enquanto isso, estamos presos ao mesmo lugar. Ao mesmo tempo. Na mesma desgraça.

E qual foi o espírito da cerimônia de entrega do Oscar em 2021? Foi como a cerimônia se dispusesse a reproduzir o repetitivo, estranho, frustrante, ressentido e interminável 2020. Se houve cinco minutos sem que alguém nos lembrasse de que há algo de horrível acontecendo, eu perdi. Quando o ponto mais engraçado da festa é Glenn Close rebolando, temos um problema.

Inacreditável, mas real: as celebrações da indústria do entretenimento eram divertidas! Num ano, Whoopi Goldberg apareceu fantasiada de Rainha Elizabeth e se declarando rainha africana. Comediantes como Chris Rock e Billy Crystal costumavam tocar o terror.

Neste ano? A diretora e atriz Regina King apareceu e imediatamente nos lembro de duas coisas das quais não precisávamos nos lembrar:

"Estamos sofrendo a perda de muitas pessoas e tenho de ser honesta, se o resultado tivesse sido diferente na semana passada em Minneapolis, eu teria trocado meu salto alto por botas militares".

“Sei que muitos de vocês em casa pensam em mudar de canal quando sentem que Hollywood está lhe passando uma lição de moral”, acrescentou ela, e milhões de pessoas pegaram seu controle-remoto para encontrar uma alternativa mais alegre, tipo A Dor e a Piedade.

Pela primeira vez desde os anos 1940, o Oscar de Melhor Filme não foi o último. Os últimos foram os Oscars de Melhor Atriz e Melhor Ator, aparentemente porque a premiação de Nomadland (que previsivelmente recebeu o Oscar de Melhor Filme) não seria tão empolgante ou sentimental quanto a premiação póstuma de Chadwick Boseman por A Voz Suprema do Blues, filme baseado numa peça de August Wilson que explora sutilmente o racismo. Boseman morreu jovem e sua atuação foi tão impactante e o discurso de sua viúva tão emocionante quando ele ganhou o Globo de Ouro que o Oscar de Melhor Ator parecia barbada.

Mas quem ganhou foi Anthony Hopkins, por interpretar um homem com demência em O Pai. Hopkins não estava presente nem mesmo por Zoom, assim como aconteceu quando ele ganhou o BAFTA, há duas semanas. Ele estava num hotel, pintando. Aparentemente ele, assim como todo mundo, achava que não tinha chance contra um morto. Outra surpresa foi a vitória de Frances McDormand por seu trabalho em Nomadland. Como ela já tinha dois Oscars e como havia duas atrizes negras (Andra Day e Viola Davis) com atuações admiráveis, pressupunha-se que todos os atores e atrizes ganhadores seriam, pela primeira vez, minorias. Os coadjuvantes Daniel Kaluuya e Yuh-Jung Youn, ambos pertencentes a minorias, já tinham ganhado suas estatuetas. O fato de dois atores negros não ganharem os prêmios de Melhor Ator e Melhor Atriz causaria incômodo — e, quando falo “causar incômodo”, estou querendo dizer “despertaria raiva”.

Antes dessas surpresas finais, a premiação foi tão empolgante quanto assistir a uma celebridade lendo os discursos de Jimmy Carter. Os primeiros prêmios, por ordem, foram para filmes sobre esses temas: masculinidade tóxica, Alzheimer, alcoolismo, racismo, racismo, racismo. Passamos, então, para um filme sobre uma mulher indigente de meia-idade que mora num furgão e faz cocô num balde, Nomadland, que fez de Chloé Zhao a primeira mulher asiática a receber o prêmio de Melhor Diretor. Depois premiamos um filme que recria a experiência da surdez, O Som do Silêncio, depois dois curtas — o primeiro sobre um negro repetidamente assassinado pela polícia e o segundo sobre tiroteios em escolas. Os dois produtores de Dois Estranhos, Travon Free e Martin Desmond Roe, usavam paletós nos quais estavam escritos os nomes de vítimas de violência policial. Suas lapelas traziam broches representando o número das camisas de Kobe Bryant e sua filha, Gianna. Ãhn?!

O primeiro vencedor da noite que não fez a plateia querer repetir o gesto de Bill Murray em O Dia da Marmota e jogar a torradeira na banheira foi Soul, a incrível animação da Pixar sobre um jazzista que, já no começo do filme, cai num bueiro e morre. Foi uma surpresa quando deram o Oscar de Melhor Documentário para uma aventura submarina chamada Meu Professor Polvo, um filme sem brutalidade policial nem fantasias feministas de vingança. Aqui e ali houve bons momentos. Zhao, em vez de falar dos perigos da globalização (o subtexto do seu filme), disse animadamente:

"As pessoas, ao nascerem, são inerentemente boas. Sempre encontrei bondade nas pessoas de todo o mundo. Então este prêmio é para todos os que têm fé e a coragem de acreditar no bem em si mesmas. E de acreditar na bondade presente em cada um, por mais difícil que seja. Este prêmio é para vocês que me inspiram a seguir em frente."

O britânico Daniel Kaluuya — premiado com o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por seu trabalho em Judas e o Messias Negro, retratando o Pantera Negra Fred Hampton — ao menos faz um discurso improvisado que começava agradecendo a Deus. “Obrigado, Deus. Não estaria aqui sem sua orientação e proteção”, disse. Depois ele falou de Fred Hampton, “que homem, como somos abençoados por vivermos na mesma época que ele” (Hampton morreu 20 anos antes de Kaluuya nascer, mas que se dane), antes de acrescentar:

"Voltarei a trabalhar só na terça pela manhã, porque hoje vou varar a noite. Temos que celebrar a vida. Estamos respirando, andando, isso é incrível. Incrível. Tipo, minha mãe gostava do meu pai, eles fizeram sexo, é incrível! E é por isso que estou aqui. Estou feliz por estar vivo, então vou celebrar isso nesta noite."

Num esforço para reduzir o contato entre as pessoas, o palco era um restaurante falso construído dentro da Union Station em Los Angeles. (“Alguns cidadãos criticaram a cidade por dificultarem o acesso ao transporte público no fim de semana”, apontou delicadamente a Variety). E o espírito da premiação era... estranho. Ao menos a maioria das pessoas importantes estava no mesmo ambiente, evitando a sensação fria das reuniões por Zoom do Globo de Ouro.

Para garantir o máximo de tédio, contudo, os apresentadores leram minibiografias de pessoas das quais a plateia, na maioria dos casos, nunca tinha ouvido falar. Reese Witherspoon: “O filme preferido de Michael Govier, quanto ele tinha 12 anos, era Cidadão Kane”. Halle Berry: “Enquanto jovem estudante de arquitetura, Nathan Crowley [indicado ao Oscar de Melhor Direção de Arte] nem sonhava em fazer parte do mundo do cinema”. Bom, talvez ele sonhasse em trabalhar com arquitetura. Ou talvez ele pensasse que havia outras possibilidades que não a indústria do entretenimento.

O primeiro muçulmano indicado ao Oscar de Melhor Ator, Riz Ahmed (por O Som do Silêncio), pediu que as pessoas que tinham começado a carreira trabalhando com curtas-metragens levantassem a mão, mas a câmera impediu que se visse quantos haviam levantado. Não que isso importasse. Quem quer saber? A premiação deveria ter como público milhões de pessoas, e não dezenas delas naquele ambiente, e a pergunta só as fez perderem tempo. “Quantos aqui preferem a cor vermelha? Quantos aqui já estiveram em Vancouver?”

Duas horas e quarenta minutos mais tarde, um joguinho chato e sem sentido sobre canções negras nos filmes nos lembrou de ficarmos com raiva pelo desprezo a “Purple Rain” há 36 anos, mas ao menos mostrou Glenn Close dançando ao som de “Da Butt”. (Close perdeu o Oscar pela oitava vez, o que é um recorde, e não pode ser culpada por estar de mau humor). Até mesmo o filme sobre as celebridades mortas foi apresentado com o estranho lembrete de todas as coisas ruins que podem matar as pessoas, incluindo a pobreza, o que pareceu esconder a perda de pessoas amadas por trás de questões políticas. Como se as pessoas fossem deixar de morrer se resolvêssemos nossos problemas sociais. Para mim, os pontos altos foram os cachorrinhos e a entrada de Julia Roberts, mas esses dois momentos foram de comerciais.

Bryan Cranston entregando o Oscar num asilo num Dolby Theatre deserto foi a cena que captou o nível de energia da noite, assim como o discurso arrastado de um Harrison Ford de 185 anos quando ele tentou fazer graça sobre a tristeza e o desânimo provocado pelas reações negativas quando do lançamento de Blade Runner. No futuro, não só as pessoas deixarão de assistir ao Oscar (a cerimônia do ano passado foi um recorde negativo de audiência, com 23,6 milhões de espectadores, mas a deste ano não chegará nem perto), como você terá de explicar por que houve uma época em que essas coisas eram consideradas divertidas e empolgantes.

Kyle Smith é membro do National Review Institute e crítico cultural na National Review.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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