Os governantes fingem ignorar a existência de um Brasil maior e mais populoso que o conhecido pelos loucos por lockdowns. Augusto Nunes via Oeste:
Neste
13 de abril, o governador João Doria foi enfim confrontado com a
pergunta que não queria ouvir — e nenhum jornalista havia ousado
formular nas mais de 200 entrevistas coletivas sobre a pandemia de
coronavírus concedidas desde março de 2020: o que pretende fazer para ao
menos reduzir as aglomerações nos ônibus, trens metropolitanos e vagões
do metrô? O repórter tinha numa das mãos fotografias que escancaravam o
tumor medonho: amontoada em ambientes opressivos e mal ventilados, a
multidão de passageiros confirmava que, todos os dias, esquadrilhas de
vírus chineses sobrevoam os meios de transporte público para expandir a
morte e o medo no maior conglomerado urbano do país. O que tinha a dizer
sobre isso o líder do combate ao inimigo invisível na frente paulista?
Os
doutores que compõem o Centro de Contingência da Covid-19, codinome do
Altíssimo Comando da Guerra Sanitária em São Paulo, que tem em Doria o
Chefe Supremo, certamente trataram dessa questão. As sumidades ali
aglomeradas (com as devidas cautelas aconselhadas pelo distanciamento
social, ressalvam) tratam de tudo. Já faz mais de um ano que se juntam
quase todos os dias para decidir o que pode e o que não pode, o que
ajuda e o que atrapalha, o que é verdade e o que é negacionismo. Como
Doria, recitam de meia em meia hora que estão lá para salvar vidas.
Conhecem a covid-19 só de vista, mas estão sempre grávidos de certezas.
Não é atormentado por dúvidas quem ouve o tempo todo a voz da Ciência e
os conselhos da Saúde. No fim da semana, o grupo comunica ao governador —
que tem a última palavra — quais municípios merecem ser alojados, por
exemplo, na fase amarela, e quais devem continuar de castigo na fase
vermelha, antessala da temida fase emergencial. (Nascida há poucas
semanas, a emergencial seria batizada de “fase preta” se alguém não
tivesse advertido que poderia parecer coisa de racista.)
Claro
que o conselho de sábios tratou do assunto. Mas a reação de Doria ao
ouvir a expressão “transporte público” lembrou a do avô surpreendido
pelo neto que, no meio do jantar da família, resolve contar aos berros
um segredo do clã transmitido aos sussurros por sete gerações. Num longo
circunlóquio, o governador ressaltou que tal problema não é uma
exclusividade paulistana. Outras capitais são assoladas com
superlotações do gênero. Tampouco se trata de uma complicação restrita
ao Brasil: Londres, Paris, Nova York — mesmo metrópoles mais avançadas
ainda não descobriram como adaptar a mobilidade urbana a estes tempos
estranhos. Já avisando que a entrevista chegara ao fim, Doria disse que o
governo estadual recomendou mais de uma vez o uso de horários
alternativos inviáveis e reiterou que os passageiros devem lavar as mãos
com álcool em gel, além de proteger o rosto com máscara.
O
próprio orador desconfiou que discursava sobre o nada, compreendeu que
seria difícil debitar mais esse pecado na conta de Jair Bolsonaro e
partiu para a ofensiva. “Não posso impedir o deslocamento de
trabalhadores de serviços essenciais”, subiu o tom. Como vetar o
embarque no metrô da enfermeira que salva vidas, do bombeiro que salva
vidas, do policial militar que salva vidas? Quem imagina que desde o
início da pandemia apenas esses profissionais usam o transporte não faz
ideia do mundo que se espreme em qualquer vagão da Linha Vermelha, nem
viu por dentro algum ônibus que leva do centro da cidade a Sapopemba.
Nesses mosaicos do Brasil, espremem-se nos horários de pico camelôs,
desempregados, assaltantes, domésticas, pedintes de esquina, babás,
garçons, pequenos negociantes, gente honesta, vigaristas, vendedores de
bugigangas, aposentados e jovens à procura de trabalho, além de
incontáveis brasileiros forçados a exercer a profissão na
clandestinidade porque a ordem é ficar em casa.
Ou
na semiclandestinidade exigida pelo farisaísmo: os cabelos bem cortados
dos homens e os penteados impecáveis das mulheres denunciam a passagem
recente de barbeiros e cabeleireiras que mantêm seus salões fechados por
determinação dos ilustres fregueses. Para chegar às casas dos clientes
loucos por lockdowns, falta a esses trabalhadores de serviços
considerados não essenciais dinheiro para chamar um Uber. Usam o
transporte público. Se ficassem em casa, o elenco que protagoniza as
entrevistas coletivas no Palácio dos Bandeirantes estaria parecido com
uma tribo de hippies dos anos 70. A boa aparência, sublinhada por
máscaras customizadas e pelo sorriso de quem vive entre o chuveiro e uma
sala com ar condicionado, avisa que o que ali se vê é um bando de
hipócritas. Portadores de miopia seletiva, fingem não enxergar os
milhões de excluídos da quarentena feita sob medida para integrantes da
classe média alta, funcionários públicos indolentes, ricos, advogados de
corruptos, corruptos com bons advogados e o restante da elite nativa.
Seria excessivo esperar que essa turma se preocupe com aglomerações
decorrentes do isolamento dos excluídos.
Previsivelmente,
os fechadores compulsivos de bares, restaurantes, templos, museus,
cinemas, teatros, shopping centers, prateleiras de supermercados, salões
de cabeleireiros, barbearias, escolas, fábricas, lojas e outras vítimas
da epidemia de autoritarismo fecharam os olhos à dramática piora da
paisagem formada pelas favelas brasileiras, onde sobrevive uma imensidão
de gente que ajuda a transformar o transporte público no maior e mais
alarmante foco de disseminação do coronavírus do Brasil. O palavrório
das entrevistas coletivas não incluiu sequer um asterisco sobre os
brasileiros amontoados em barracos. Também não foi nem será dedicada uma
mísera vírgula à pesquisa feita entre 9 e 11 de fevereiro pelo
Instituto Data Favela, em parceria com a Locomotiva – Pesquisa e
Estratégia e com a Central Única das Favelas (Cufa).
Foram
entrevistados habitantes de 76 favelas espalhadas por todos os Estados
brasileiros. As constatações são desoladoras. Nas duas semanas
anteriores ao levantamento, por exemplo, em ao menos um dia 68% dos
moradores não tinham conseguido dinheiro para comprar comida. As
refeições diárias caíram de 2,4 em agosto de 2020 para 1,9 em fevereiro,
e 71% das famílias agora sobrevivem com menos da metade da renda obtida
antes da pandemia. Nove em cada dez favelados receberam alguma doação.
Sem esse gesto solidário, oito em cada dez famílias não teriam condições
de se alimentar, comprar produtos de higiene e limpeza e pagar contas
básicas. Nas favelas, o número de casos confirmados e óbitos é o dobro
do registrado nos bairros nobres, mas apenas 32% procuram seguir as
medidas de prevenção. Outros 33% tentam de vez em quando ajustar-se às
regras, 30% afirmam que não conseguem segui-las e 5% abdicaram de
tentativas. É certo que, do começo de fevereiro para cá, esse cenário se
tornou ainda mais cinzento.
A
imprensa velha está fora do universo pesquisado. Os moradores não
entendem o que dizem comentaristas da Globo, o grego antigo lhes parece
menos complicado que o subdialeto falado por ministros do Supremo e o
alcance da internet é muito menor que nas regiões habitadas por quem
desfruta de três refeições por dia. Mas também nos barracos se manifesta
a sabedoria subjacente do povo brasileiro. Os favelados sabem o que fez
e faz cada governante e cada instituição no Brasil da pandemia. Acuados
pela fome e pela insegurança, usam o transporte público para buscar
algum dinheiro em outros pontos da cidade. Sabem que as aglomerações nos
ônibus, trens urbanos e vagões do metrô são perigosas. Mas os
participantes involuntários do isolamento dos desvalidos acham muito
mais perigoso esperar num barraco a salvação que não virá.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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