A espécie viveu sempre atada ao passado ancestral, a obsessão pelo futuro veio nos últimos 200 anos. Luiz Felipe Pondé para a FSP:
Se pegássemos uma máquina do tempo e chegássemos ao sítio arqueológico
de Ain Ghazal (na atual Jordânia), cerca de 7.500 atrás, e
perguntássemos aos seus habitantes (na língua deles) por qual razão eles
desenterravam seus mortos, cortavam suas cabeças e espalhavam pedaços
dos corpos pelo local em que viviam, provavelmente, não entenderíamos
nada da resposta que eles dariam. Por quê?
Uma
hipótese para alguns arqueólogos do neolítico (grosso modo, período
entre 6.000 e 12 mil anos atrás) é que nossos ancestrais deliravam
grande parte do tempo.
“Delirar”
aqui significa viver numa esfera em que o mito se mistura com a
realidade, ou melhor, a realidade é o mito no plano da percepção do
mundo. O cérebro não faz diferença entre o que é mito e o que é
realidade.
Não
há fronteiras entre mundo cotidiano natural e o sobrenatural. Não há
diferença entre a percepção da realidade cotidiana e estados alterados
de consciência. Ou como diria o psicólogo canadense Jordan Peterson,
os objetos em si (visão científica) estão imersos nas narrativas
dramáticas dos mitos. Fazer essa diferença é experiência novíssima na
espécie e pode acabar a qualquer momento, além de não ser majoritária
ainda hoje.
O
sapiens tem sido uma espécie delirante. O pensamento racional e
científico é um evento muito recente e não necessariamente bem adaptado.
Qualquer rachadura na parafernália capitalista e tecnológica, voltamos
aos delírios do neolítico.
A
ausência de fronteira clara entre o cotidiano concreto (para uma mente
racional e científica moderna) e o estado onírico, extático, ou
delirante, é perceptível nos achados arqueológicos neolíticos no Oriente
Médio (e em outros locais).
Nesses
achados não dá para dizer se as estruturas encontradas seriam
habitações ou santuários. Ambas as funções estão misturadas. Morava-se
no mesmo lugar em que se fazia cultos. Morava-se onde se enterrava e
desenterrava os seus mortos. Afinal, pra que desenterrar os mortos?
Uma
obra consistente (e controversa) para quem se interessa pelo assunto é
“Inside the Neolithic Mind”, de David Lewis-Williams e David Pearce
(Thames & Hudson, Londres, 2005).
Amostras
muito antigas de sangue humano misturado com sangue animal, da Índia à
Turquia, em estruturas construídas com características de residência e
santuário ao mesmo tempo, revelam a possibilidade de sacrifícios humanos
e de animais dentro da própria casa, o que reforça a tese da não
separação entre o que chamaríamos de templo religioso e residência
“privada”.
A espécie viveu sempre atada ao passado ancestral, a obsessão pelo futuro veio nos últimos 200 anos.
A
rigor, os últimos 2.500 anos de racionalidade foram bem atípicos num
universo de 400 mil de existência do sapiens. Portanto, vá devagar com o
santo porque nós modernos somos aquele tipo de neófito que já quer se
sentar na janelinha.
Outra
obra essencial aqui é “La Cité Antique”, do historiador francês do
século 19 Foustel De Coulanges (Flammarion, edição de 1984). Ele trata
da religião doméstica dos cultos aos ancestrais das famílias na Grécia e
Roma neolíticas e mesmo no período antigo. As fontes são muitos dos
textos dos antigos sobre seus costumes herdados de milênios antes deles.
Caso
o filho mais velho não fizesse oferenda de comida aos mortos, que
permaneciam “vivos” nos túmulos dentro da própria casa, esses mortos
virariam demônios a atormentar os vivos. Cada pessoa era um pequeno elo
numa cadeia de ascendentes e descendentes ao longo do tempo natural e
sobrenatural.
O
vínculo entre ancestrais e vivos era essencial. Filhos eram um ativo na
condução da eternidade dos mortos. Hoje, os filhos são um passivo, por
isso ninguém mais quer tê-los.
Mesmo
para aqueles que creem na eternidade, esta não depende de filhos.
Mesmos os mortos passaram a ser vistos, por “especialistas”, como
agentes de apodrecimento do solo. A moda é cremar todo mundo. Túmulos
são incorretos.
Enfim,
a mente racional é recente em nós e pode desaparecer a qualquer
momento. A razão é um ônus. Seu delírio particular é o mito do
progresso.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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