Quando o aluno sai da bolha universitária e vai para fora descobre que a sociedade não tem interesse naquilo que ele está falando. Reportagem de Gabriel Sestrem para a Gazeta do Povo:
O
investimento de recursos públicos para pesquisa científica nas áreas
categorizados como Ciências Humanas – a exemplo de Filosofia, Artes,
Sociologia, História, Educação, Literatura e Comunicação – vive uma
“crise de legitimidade” perante parte da opinião pública.
De
um lado, nota-se a importância dessas áreas de conhecimento e sua
indiscutível contribuição para a compreensão do mundo e do funcionamento
da sociedade; o entendimento das organizações e expressões políticas e o
desenvolvimento das ideias de democracia, liberdade e justiça; a
comunicação social e as várias formas de expressão; e a transmissão do
conhecimento humano por meio do desenvolvimento dos métodos de ensino,
por exemplo. Na outra ponta, entretanto, há uma preocupação legítima do
“cidadão comum”, que não tem visto os recursos públicos alocados nas
áreas de Humanidades trazerem soluções aos problemas da sociedade.
“O
debate sobre quais são os retornos reais que a pesquisa científica em
Humanidades traz para a população não é uma exclusividade do Brasil – é
um fenômeno detectado em vários países e há uma literatura específica a
respeito. A impressão que se tem é que enquanto a sociedade foi para um
lado, a universidade foi para o outro. Existe um descompasso entre as
Ciências Humanas e a sociedade em geral”, aponta um pesquisador e
professor universitário de História ouvido pela reportagem, que preferiu
permanecer no anonimato por medo de ser perseguido.
Essa
preocupação mais acentuada com o retorno do investimento nas áreas de
Humanidades pode se agravar em momentos de instabilidade econômica, mas
também em períodos em que o aporte de recursos públicos nos saberes
humanísticos passa por aumentos mais acentuados.
No
Brasil, o Ministério da Educação (MEC) é um dos fomentadores de
recursos públicos em pesquisa científica ao lado do Ministério da
Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Como mostrado pela Gazeta do
Povo, o investimento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes), agência vinculada ao MEC, na área de Ciências
Humanas tem aumentado nos últimos anos – em 2020 a área foi a que teve o
maior orçamento dentre todas, com valores próximos a R$ 400 milhões.
Modelo adotado por cursos de Humanas se esgotou, aponta pesquisador
De
acordo com o professor de História, os cursos de Ciências Humanas, sob o
pretexto de tornar os alunos mais conscientes socialmente e por
abarcarem extensamente em demandas identitárias ligadas a movimentos
sociais e a minorias, acabam dando poucos mecanismos para os alunos
evoluírem socialmente. O reflexo disso, segundo ele, é que as pesquisas
científicas na área se tornaram inviáveis.
“Quando
o aluno sai da bolha universitária e vai para fora descobre que a
sociedade não tem interesse naquilo que ele está falando. Esses temas
recebem muito financiamento, além de terem ampla aceitação do meio
acadêmico. Mas esse interesse está descolado do interesse da sociedade,
só diz respeito àquela bolha”, declara.
O
pesquisador explica que esse direcionamento dentro dos cursos de
Humanidades teve início nos anos 50, período em que a área passou a
focar em aspectos do multiculturalismo e a ensinar aos alunos que todas
as manifestações culturais teriam o mesmo valor, independentemente do
seu conteúdo - o infanticídio nas culturas dos índios, por exemplo,
teria de ser respeitado. “A direção do pós-guerra para as Ciências
Humanas é o relativismo cultural e uma grande valorização das outras
culturas. E aí se evoluiu rapidamente para um processo de
culpabilização: não basta valorizar a cultura do outro, é preciso
culpabilizar quem oprimiu a cultura do outro. Isso vem crescendo na área
de década pra década, e as duas últimas gerações já nasceram dentro
dessa perspectiva”.
O
professor afirma que esse direcionamento focado no multiculturalismo
foi importante em um primeiro momento, sobretudo nas décadas de 70 e 80,
mas o modelo se esgotou e, junto dele, passou a haver um esgotamento do
impacto das Ciências Humanas, que se tornaram porta-vozes dessa
perspectiva de mundo.
Baixo alcance de pesquisas em Ciências Humanas e ideologização política reduzem impacto científico
Pedro
Caldeira, professor na Universidade Federal do Triângulo Mineiro,
pesquisador de áreas como tecnologia educacional, alfabetização e
literacia e diretor do Núcleo de Educação do grupo Docentes Pela
Liberdade (DPL), explica que são poucas as pesquisas nas Ciências
Humanas com impacto científico internacional. Um estudo tem impacto
científico quando é publicado em revistas acadêmicas renomadas e citado
com frequência em pesquisas de alto nível, pelo fato de seu conteúdo
ajudar a compreender fenômenos ou trazer soluções para problemas
concretos.
“Há
basicamente dois tipos de critérios para se perceber se a pesquisa
científica gera ou não retorno para um país: o quantitativo, isto é, a
quantidade de publicações em revistas científicas, e o qualitativo, ou
seja, o impacto da pesquisa feita no país segundo um ou outro indicador
estabelecido internacionalmente. No Brasil publica-se muito, mas esse
indicador de quantidade é enganador, uma vez que o que é publicado fica
em repositórios em geral nacionais e que não são lidos ou mesmo
referenciados por pesquisadores nacionais ou de outros países”, aponta
Caldeira.
“Daí
a necessidade de se analisar o retorno da pesquisa nacional em termos
de impacto: a qualidade da produção nas Ciências Humanas é, em geral,
tão baixa que na comparação com outros países com níveis elevados de
produção científica, o Brasil ocupa as últimas posições”.
Caldeira
afirma que pesquisas produzidas no Brasil relacionadas às Ciências
Humanas muitas vezes não se configuram, de fato, como científicas.
“Encaixa-se mais em um conceito como ‘narrativa típica da pós-verdade’
ou é pura ‘ideologia aplicada’”.
Para
exemplificar, o pesquisador cita como a alfabetização é encarada como
objeto da pesquisa científica no Brasil e nos países desenvolvidos.
Segundo ele, entre 20 e 30 anos atrás, países como Estados Unidos,
Canadá, Reino Unido e França tinham problemas em termos de alfabetização
muito semelhantes aos do Brasil. “O que fez o Brasil: apesar de ter
acesso à pesquisa nessa área tão boa como em qualquer outro país, os
‘especialistas’ e decisores políticos decidiram enveredar por um caminho
baseado em narrativas e não em evidências científicas. Como resultado,
não apenas não conseguiram resolver o problema como o agravaram. O que
fizeram outros países: constituíram comissões de especialistas que
procuraram por evidências, que curiosamente passaram sempre pelo mesmo
tipo de soluções, e que tinham em consideração como o cérebro humano
processa a leitura”, observa.
O
professor de História endossa a visão de Pedro Caldeira e aponta que a
orientação acadêmica sob o foco das demandas sociais e da ideologização
política prejudica não somente a pesquisa, mas também as perspectivas de
inserção no mercado de trabalho por parte dos alunos, o que implica
diretamente na redução das desigualdades sociais.
Segundo
ele, há uma virada que precisa ser dada dentro das universidades, mais
especificamente nas áreas de Humanidades, que é fundamental para que os
alunos tenham perspectivas de inserção social quando saírem das
universidades, além de potencializar a função das pesquisas.
“Não
podemos sistematicamente formar alunos que odeiam o capitalismo. Tenho
uma aluna de doutorado que tem um canal de vídeos sobre Gastronomia e
História, outra que trabalha com moda aliada à História. Tentamos criar
possibilidades, mas para criá-las de fato, a universidade tem que parar
de ‘satanizar’ o capitalismo, senão não consigo colocar para meus alunos
que desde cedo eles precisam saber como vão fazer funcionar o
conhecimento que estão tendo dentro da universidade. E isso tem a ver
com combater a desigualdade”, declara.
Desconexão entre universidade e necessidades populares
O
professor e pesquisador Guilherme Wood afirma que o impacto gerado
pelas Ciências Humanas está diretamente ligado à forma como cada país se
organiza quanto à produção científica em suas universidades. O
pesquisador, que atualmente reside na Áustria, diz que no Brasil, mesmo
nas áreas de Ciências Exatas e Biológicas, é muito mais difícil que os
resultados de pesquisas se revertam de forma prática para a sociedade.
“A
Áustria, sem a dinâmica de translação de conhecimento básico de
pesquisas aplicadas e desenvolvimento tecnológico e de transformação
desse conhecimento e desenvolvimento em produtos concretos, estaria
perdida há muito tempo. Não só a Áustria, mas a Europa em geral. Os
países mais desenvolvidos usam melhor seu capital intelectual, que é
revertido em inovação tecnológica”.
Wood
aponta que nas universidades brasileiras a prestação de contas costuma
ser feita apenas à sociedade civil organizada, que são partidos
políticos, ONGs e outras formas de organização formal minoritárias, que
possuem interesses que divergem muito dos interesses populares. Segundo
ele, isso ocasiona uma desconexão com as necessidades amplas e não há
mecanismos para gerar uma prestação de contas de acordo com os
interesses populares.
Caminhos para a pesquisa científica em Ciências Humanas no Brasil
Na
avaliação de Caldeira, há quatro possíveis caminhos para que a pesquisa
científica nas áreas de Ciências Humanas gerem mais impacto, contribuam
mais para o desenvolvimento do país e proporcionem maior retorno para
os recursos públicos aplicados: a) a definição de áreas prioritárias de
investimento; b) a identificação de problemas que pertencem claramente
ao objeto dessas Ciências e a correspondente abertura de editais para a
submissão de projetos que visem a resolução desses problemas; c)
alteração dos critérios de avaliação de programas de pós-graduação e de
pesquisadores; d) uso de métricas internacionais que comprovaram ter
boas capacidades na avaliação da qualidade da pesquisa produzida.
“A
concepção de uma solução para o problema da avaliação da pesquisa e dos
pesquisadores não se revelou até hoje adequada. Assim, passar a usar
essas métricas internacionais é uma alternativa. Essa foi a direção
seguida por muitos países quando quiseram elevar o impacto e a
relevância da pesquisa neles produzida. Se outros conseguiram, por que
nós não?”, avalia.
Por
outro lado, Wood aponta que a auditabilidade, isto é, a verificação da
responsabilidade dos agentes dentro das universidades, é imprescindível
para que as Ciências Humanas tenham maior valor prático.
“Quando
a universidade está encapsulada em si mesma e vive em um mundo à parte
sem prestar contas a ninguém, o produto do trabalho realizado dentro da
instituição não vai ter qualquer impacto na sociedade. Pode ser que seja
completamente irrelevante porque está desconectado do resto da vida
social”, afirma.
Já
o professor de História cita que os cursos de Ciências Humanas como um
todo precisam ser repensados para formar pessoas atentas aos interesses
concretos da sociedade, e isso impactará diretamente na melhoria da
pesquisa científica da área. Ele explica que, ao contrário do que se
observa atualmente na Capes, por exemplo, os recursos precisam ser
melhor aplicados e isso, inevitavelmente, passa pela redução do
investimento na área.
“É
possível melhorar o grau de qualidade dos cursos de Humanas, mas para
isso é preciso mostrar serviço e atender melhor os interesses sociais",
diz. O pesquisador defende que a saída inevitável para a readequação da
área não é o aumento de aportes, e sim a redução, para utilizar melhor
os recursos públicos a partir de um plano prévio.
“Mas
o que vemos é que o investimento em bolsas de pesquisa de Humanidades
está aumentando. Isso significa falta de planejamento. Não planejamos
nossas pós-graduações a partir de um cenário de empregabilidade. Nunca
ninguém quis falar nisso. Era certo que as pessoas teriam um emprego
público ou encontrariam emprego em ONGs. Agora a realidade é diferente.
Temos que fazer um planejamento de médio e longo prazo se quisermos
fazer ciências de qualidade. Não adianta só injetar dinheiro – se não se
sabe para que formamos e pesquisamos, não sabemos como formar e
pesquisar”, destaca.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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