Há evidências abundantes de que a geração Z, a turma que hoje está na casa dos vinte e poucos anos, que foi para a escola com celular no bolso, é a geração com os mais altos índices de ansiedade e depressão da história, bem como as mais altas taxas de suicídio. Reportagem de Maria Clara vieira para a Gazeta do Povo:
Não
é de hoje que os efeitos da cultura do cancelamento se fazem sentir nas
universidades, nas artes, na política e, principalmente, nas redes
sociais. A divisão do mundo entre oprimidos e opressores, canceladores e
cancelados ou, no jargão dos mais jovens, “fadas sensatas” e “pessoas
tóxicas”, hoje, tem sua face mais caricata exposta no reality show Big
Brother Brasil, no qual alguns dos participantes se valem de seu
pertencimento a um determinado grupo identitário para humilhar outros
colegas.
Enquanto
esta reportagem é escrita, o principal expoente deste comportamento na
casa “mais vigiada do Brasil” é a psicóloga Lumena Aleluia, escolhida
para o programa por sua militância e um bom humor que nunca deu as
caras: deu lugar ao dedo em riste. O festival de discussões agressivas
fomentadas pelo identitarismo pregado pela psicóloga e outros
participantes levantou o debate sobre as consequências das teorias
pós-modernas para além das políticas públicas: o que está em risco são
os relacionamentos e o bem-estar de uma geração.
Há
evidências abundantes de que a geração Z, a turma que hoje está na casa
dos vinte e poucos anos, que foi para a escola com celular no bolso e
chegou à faculdade quando termos como "interseccionalidade" e
“representatividade” ganhavam espaço no currículo e no Twitter, é a
geração com mais altos índices de ansiedade e depressão da história, bem
como as mais altas taxas de suicídio.
Vários
fatores ajudam a explicar esse quadro, resultado de um ciclo vicioso
composto por aplicativos viciantes, jovens inseguros, pais e professores
superprotetores cada vez mais dispostos a proteger os rebentos de
“discursos que ameaçam sua existência” ao invés de ensiná-los que, às
vezes, trata-se apenas de discordância. E a divisão do mundo entre
grupos de vilões e mocinhos só ajuda a aprofundar o problema.
Culpa por ser branca
Membro
da Heterodox Academy e doutor em psicologia clínica pela Universidade
de Long Island, o psicólogo Andrew Hartz explica que ver a vida em
termos de “tudo ou nada” é um fator de desregulação emocional, conhecido
pelos pesquisadores como “clivagem”. “O mecanismo da clivagem é
estudado por pesquisadores da saúde mental há mais de 80 anos. Sabe-se
que quando um paciente divide grupos de pessoas ou ideais políticos como
‘preto no branco’, quase sempre está distorcendo a realidade”, explica
Hartz, à Gazeta do Povo.
A
consequência desta divisão, diz o psicólogo, é a adoção de
comportamentos agressivos ou depreciativos, bem como a dificuldade
crescente de avaliar e resolver problemas reais com parcimônia. Se, de
um lado, o Brasil assiste aos exemplos do Big Brother, do outro, Hartz
conta que, há poucos anos, atendeu uma paciente que sentia profunda
culpa por ser branca.
“Em
muitos casos, essas pessoas não estão exagerando: absolutamente tudo o
que elas pensam e sentem com relação a outro espectro político, outra
etnia ou outra orientação sexual é imoral, negativo, revoltante ou
deprimente”, descreve o psicólogo, que compara a condição à forma como
pacientes com depressão ou ansiedade se comportam.
“Se
você aponta algo positivo do outro lado, eles se sentem atacados. É
como se você estivesse invalidando todas as queixas e isso soa ofensivo.
Além disso, para essas pessoas, sentir algo positivo sobre si mesmas ou
sobre o grupo que odeiam é desconfortável, quase doloroso, mas é
preciso fazê-las entender que é parte do remédio”. A clivagem, portanto,
é sintoma de problemas de saúde mental — e não a solução.
“Criamos
esse mecanismo porque, no curto prazo, lidar com sentimentos
contraditórios sobre pessoas e causas é difícil e confuso; enquanto
dividir o mundo é mais simples: você sabe quem é e sabe quem está
errado. No longo prazo, entretanto, vêm as desvantagens, inclusive na
forma do contágio social que temos visto: progressistas exageram de um
lado, conservadores exageram de outro”, completa o psicólogo.
Negritude e feminismo
O
identitarismo também compromete o desenvolvimento da resiliência, área
de estudos do psicólogo Dennis Relojo-Howell, membro da British
Psychological Society e fundador do portal Psychreg. “Uma das premissas
básicas da psicologia é que um paciente que procura terapia só é capaz
de alterar o próprio comportamento - e não esperar que o mundo inteiro
mude. O problema das teorias pós-modernas é que elas removem toda a
responsabilidade da pessoa e a ensinam que, por ser uma vítima, ela
nunca estará errada. Na prática, estamos recompensando jovens por anular
as próprias capacidades e destruindo sua fonte primária de
resiliência”, explica.
Outro
elemento agravante deste ciclo é o impacto das teorias identitárias na
formação de psicólogos. “Eu me lembro de quando ouvia, na faculdade, que
devíamos buscar práticas baseadas em evidências. Hoje tudo tem a ver
com experiência pessoal. O estudo da saúde mental e a psicologia como um
todo se tornaram um campo extremamente subjetivo”, explica
Relojo-Howell.
A
proliferação das teorias sócio-construtivistas na academia, em
detrimento do conhecimento baseado em evidências calcadas no método
científico, não é prerrogativa dos consultórios americanos ou
britânicos: ela afeta também o Brasil. Formado na Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), o psicólogo F., que pediu para não ser
identificado, recorda que, durante uma das greves pelas quais passou na
faculdade, os estudantes pediam por disciplinas “menos conteudistas” e
mais focadas em estudos de negritude ou feminismo.
“A
psicologia é uma área de estudo recente e, por isso, mais suscetível às
teorias pós-modernas, calcadas apenas nas experiências pessoais e nas
chamadas relações de poder. Não por acaso, algumas das áreas da
psicologia que contam com estudos mais sólidos, como a psicologia
evolucionista, vêm sendo deixadas de lado por abordar diferenças entre
grupos com base em dados empíricos, ao invés de pregar o igualitarismo
cósmico pregado pela esquerda”, explica F.
A
psicologia evolucionista é o ramo que ajuda, por exemplo, a entender as
diferenças entre os sexos — sumariamente negadas pela militância
identitária — e fornecer dados importantes para a aplicação de
tratamentos adaptados às necessidades de homens e mulheres. A terapia
cognitivo comportamental, outra abordagem com farta evidência
científica, ajuda os pacientes a reverterem pensamentos catastróficos e
disfuncionais, o oposto da lógica militante que incentiva seus adeptos a
jamais desconfiarem de seus próprios sentimentos e impressões e a
inferir, o tempo todo, quais são as intenções maléficas por trás de
qualquer fala que os desagrade.
Problema de “privilegiado”
Um
terceiro efeito do identitarismo que ameaça a saúde mental da geração
do cancelamento é a deterioração da relação entre terapeuta e paciente,
dado que as teorias identitárias ordenam que se veja o próximo como
integrante de um grupo a ser exaltado ou desmoralizado. F. conta que já
trocou de terapeuta por relatar uma dificuldade para se relacionar com
colegas de classe e ter sua queixa classificada como um problema de
“privilegiado”. “É esperado que, às vezes, a psicoterapia exponha
verdades que não estamos dispostos a aceitar. O problema é que no
identitarismo o terapeuta já tem na cabeça um modelo pré-estabelecido de
quem está certo e errado”, conta.
Em
Nova York, Hartz conta que já atendeu um paciente que relatou ao
terapeuta anterior que era contrário a ações afirmativas (como cotas
raciais) e ouviu que deveria “rever suas posições racistas”. “Trata-se
de uma linha tênue, mas não é nosso dever alterar a crença política do
paciente — o que podemos avaliar é a forma como ele se engaja com ela”,
explica.
O
especialista também procura tratamento para pessoas que se sentem
ostracizadas no ambiente de trabalho por terem opiniões impopulares.
“Não há nada no mercado para elas”, lamenta. “Se você não está preso no
mundo do tudo ou nada, você precisa ouvir todos os pontos. Isso ajuda,
inclusive, a evitar o ressentimento por parte dos que são excluídos do
debate — e que podem, por isso, adotar posturas mais extremas”, diz.
"Isentão"
Na
semana passada, uma pesquisa da Universidade de Cologna que contou com
mais de 1.800 participantes demonstrou que pessoas capazes de lidar com a
ambivalência — a capacidade de enxergar nuances em pessoas e causas —
fazem menos julgamentos enviesados e tendem a acreditar menos em
notícias falsas. Em entrevista à Gazeta do Povo, a autora do estudo,
Iris Schneider, afirmou que, embora este não tenha sido o foco da
pesquisa, é sabido que experimentar emoções contraditórias com
frequência traz benefícios para a saúde física. “Também sabemos que
experimentar sentimentos contraditórios pode contribuir para um estado
de bem-estar perene”, explica.
“Ser
ambivalente, entretanto, pode fazer você se sentir inseguro e talvez um
pouco ‘isentão’. Mas está tudo bem. A vida pode ser incômoda e
precisamos aceitá-la, porque é somente a partir desse incômodo que
podemos começar a aprender”, define a pesquisadora. “O que também pode
ajudar é perceber que a ambivalência não é sinônimo de ser sem graça. É
ser informado, matizado, equilibrado e atencioso. Basta lembrar de Scott
Fitzgerald: 'o teste de uma inteligência de primeira classe é a
capacidade de manter duas ideias opostas na mente ao mesmo tempo e ainda
reter a capacidade de funcionar'”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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