Numa palestra de 2016, o professor Jin Canrong deu detalhes do plano, depois abandonado, para criar um quarto adversário da potência americana. Vilma Gryzinski:
A
China está manifestando de forma cada vez mais agressiva a animosidade
em relação aos Estados Unidos, parte de um plano estratégico de disputa
pela hegemonia mundial.
E
poucos porta-vozes dessa política confrontacionista são mais conhecidos
no Ocidente do que o professor Jin Canrong, diretor do Centro de
Estudos Internacionais da Universidade de Renmin, em Pequim.
Em
inglês fluente, o professor fala de forma explícita aquilo que a
ofensiva política de Estado promove por trás de um discurso cor-de-rosa
que fala em cooperação e resolução pacífica de conflitos.
Numa
palestra de 2016, só agora divulgada no Ocidente, ele discorreu
amplamente sobre os métodos usados pelo regime chinês para sobrepujar os
Estados Unidos.
O
projeto tem dois fundamentos: enfraquecer os Estados Unidos
internamente e através de desafios externos e aumentar o poder
econômico, militar e diplomático da China.
Na
parte que mais nos interessa, envolvendo o Brasil: faz parte da “missão
estratégica” do Partido Comunista Chinês garantir que os Estados Unidos
tenham pelo menos quatro grandes adversários externos.
“Se os Estados Unidos tiveram quatro inimigos, perdem o rumo”, resumiu ele, em tom excepcionalmente franco.
“O
terrorismo é definitivamente um inimigo dos Estados Unidos. A Rússia
parece ser outro. Definitivamente, os Estados Unidos nos veem como um
competidor. Mas não basta.”
Entra
aí o papel que o regime chinês via para o Brasil. Segundo o professor,
durante alguns anos, o regime chinês tentou transformar o Brasil no
quarto adversário dos Estados Unidos.
Para
ter o apoio do Brasil em fóruns internacionais, disse ele, a China
decidiu fazer grandes investimentos em infraestrutura, inclusive na
ferrovia ligando portos brasileiros ao Peru – todo mundo sabe de que
governo era esse projeto.
A
primeira visita de Xi Jinping ao Brasil foi ligada à grande estratégia
de cooptação do Brasil. Mais interessante ainda, segundo Jin Canrong: o
regime chinês desistiu “porque o Brasil não quer ser melhorado”.
A
criação de um quarto adversário é uma das quatro partes do plano de
enfraquecimento dos Estados Unidos e sua substituição pela China como
potência hegemônica, uma disputa que Jin Canrong compara à de uma
empresa.
Os
Estados Unidos, nessa analogia, são o presidente da empresa, e a China é
o vice. “Um homem de meia idade, de boa aparência, com altas
capacidades e apoio dos funcionários”.
Para
ser substituído, “primeiro, precisamos criar as condições para
facilitar que os Estados Unidos cometam erros. Segundo, precisamos
torná-lo tão ocupado que se sinta deprimido e queira cair fora.
Terceiro, precisamos nos tornar tão interligados com os Estados Unidos
que eles não possam nos atacar”.
Além
da criação do quarto elemento de oposição aos Estados Unidos,
temporariamente suspensa depois que os chineses desistiram de colocar o
Brasil nesse papel, outros métodos incluem a interferência no processo
eleitoral; o progressivo controle do mercado americano – “mais aberto do
que o japonês e os europeus” – e a criação de problemas em frentes
internacionais que suguem recursos e desviem a atenção da China.
Como
exemplo de problemas formidáveis, “completamente sem valor estratégico,
Jin Canrong mencionou as intervenções no Afeganistão e no Iraque, que
custaram “6 trilhões de dólares e 10 mil vidas”.
A
palestra recuperada do acadêmico, que é consultor da direção do Partido
Comunista Chinês, ganha atualidade diante dos movimentos recentes da
China para eliminar qualquer anseio democrático em Hong Kong e apertar
os parafusos em relação a Taiwan.
Detalhe:
o professor Jin Canrong previu que 2021 seria um ano decisivo para a
questão de Taiwan, a ilha onde buscaram refúgio as forças nacionalistas
derrotadas em 1950 na guerra civil contra os comunistas.
A
nova agressividade da China ficou estrondosamente clara no encontro no
Alaska em que o enviado chinês, Yang Jiechi, fez picadinho do novo
secretário de Estado americano, Tony Blinken, um experiente assessor
íntimo de Joe Biden.
Entre
outras coisas, ele disse que americanos negros estavam sendo chacinados
– uma mentira absurda, embora existam até americanos que acreditam
nela.
Blinken
deveria ter se levantado e saído, mas continuou diplomaticamente a
ouvir o esculacho, numa demonstração de autocontrole que, do ponto de
vista chinês, só pode ser interpretada como sinal de fraqueza.
Intervalo
para descontrair: a intérprete de Blinken tinha cabelo pintado de roxo,
o que foi considerado pelo campo anti-Biden como um caso ridículo de
inadequação à função.
Em
compensação, a intérprete chinesa chamou a atenção pela beleza e virou
meme. Várias frases de Yang Jiechi também correram as redes sociais e
acabaram em camisetas, numa celebração nacionalista.
O
nacionalismo insuflado oficialmente também provocou a retirada em massa
de cantores e atores contratados para fazer campanha por grandes
multinacionais como Nike, Adidas e a rede de lojas H&M.
Numa
verdadeira manobra de guerra de propaganda, o regime chinês desencavou
declarações dessas empresas comprometendo-se a não usar algodão
proveniente Xinjiang, a província onde a minoria étnica uigur sofre uma
feroz repressão.
Prisioneiros nos campos de reeducação fazem trabalhos forçados.
A
questão uigur é complexa. Como muçulmanos, alguns foram suscetíveis à
radicalização fundamentalista que se propagou em tantos outros lugares e
houve episódios sucessivos de ataques a facadas contra chineses han, a
etnia dominante.
Além
de perder seus garotos propaganda, as empresas envolvidas também foram
removidas das plataformas de venda, o que equivale a um boicote letal.
“A
H&M pode continuar a ganhar dinheiro no mercado chinês? Não mais”,
explicitou Xu Guixiang, porta-voz do governo regional. Com o exagero que
agora caracteriza as antes cautelosas manifestações oficiais, ele disse
que as denúncias de abusos e trabalhos forçados em Xinjiang são “as
acusações mais falsas da história da humanidade”.
Ataques
táticos como esse fazem parte da grande estratégia chinesa, assim
resumida pelo sempre sincero professor Jin Canrong: “Nós queremos ser o
líder mundial”.
Se
os chineses desistiram de transformar o Brasil no quarto foco de atrito
para os Estados Unidos, com toda certeza continuam a ter muitos planos
para o país na ordem mundial que estão rearranjando segundo seus
interesses.
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