A devastação atinge as pessoas, corrói a saúde e produz a miséria. Será esse o nosso destino? Artigo do professor Denis Rosenfield para o Estadão:
A
irresponsabilidade do governo federal, secundado por boa parte dos
estaduais, beira o absurdo. São mais de 250 mil mortos, nenhuma previsão
de melhora e discussões bizantinas sobre alternativas inexistentes,
como a da escolha entre vacina ou trabalho, como se fossem excludentes.
Enquanto não houver vacinação maciça não haverá volta à normalidade.
Os
limites da racionalidade são testados diariamente, como se a destruição
fosse inevitável, seja da saúde coletiva, seja dos fundamentos da
economia. Há, atuante, o que Freud chamava de pulsão de morte, Tânatos,
que age “livremente” sem nenhuma contenção. Ou, em linguagem bíblica, a
devastação atingindo pessoas, corroendo a saúde e produzindo a miséria.
Será esse o nosso destino? Um ano já se foi, o de 2020, o outro começa a
ir-se. E discutem-se as eleições de 2022!
A
incompetência – A incompetência é o lado mais visível da devastação.
Não há vacinas, não há insumos para a sua produção, não há leitos de UTI
suficientes, não há oxigênio em algumas cidades. Boa parte do ano foi
gasta com declarações inúteis sobre vacinar ou não, como se a vida do
outro pudesse ser objeto de escolha. Todas as opções feitas foram
erradas, com a exceção do governador João Doria, que tomou a iniciativa
de comprar e produzir vacinas, a dita chinesa, que o presidente, enfim,
depois de muita tergiversação, decidiu “nacionalizar”. No momento de
tomar iniciativas meses atrás, demitiu ministros que tinham noção da
gravidade da situação e os substituiu por um que só obedece, dando tempo
para o vírus produzir os seus efeitos. Ode à irracionalidade.
A
destruição – O resultado é a destruição. Vidas são perdidas, o medo da
morte se generaliza, as pessoas se perguntam pelo amanhã, anseiam pela
volta de uma normalidade perdida. E a perda se reflete no emprego, no
nível de vida, na miséria hoje vivida por boa parte da população. Se o
auxílio emergencial vier – e deveria moralmente vir –, parece que o será
por razões eleitorais, e não por compaixão ao próximo. As autoridades
responsáveis deveriam mostrar um mínimo de moralidade, de preocupação
com o outro, e não se ater a coisas da política mais comezinha, cargos,
privilégios e ausência de postura. E não apenas na ordem sanitária a
pulsão de morte está presente, mas também no abalo da economia, na
irresponsabilidade fiscal, na ausência de alternativas. Quanto mais o
País afunda, mais é dito que tudo é fruto de más notícias, da imprensa e
da mídia tradicional, como se dizer a verdade, expor o que está
realmente acontecendo, fosse o maior dos males. Bem e mal trocaram da
posição.
A
poção mágica – O País regrediu a rituais mágicos. Enquanto a devastação
progride e a morte se alastra, foi-nos oferecido uma poção mágica,
coquetel de medicamentos inúteis para o tratamento da covid-19. Deu-se
até um nome a isso, “tratamento precoce”. De tratamento não tem nada e
de precoce só a enganação. Voltamos a um mundo medieval de drogas
milagrosas com mercadores ambulantes que tudo prometem e nada fazem
senão vagar para o próximo embuste. Milhões de reais foram gastos com a
tal da cloroquina, que foi distribuída a Estados e municípios, como se
algo estivesse sendo feito. Para vacina, nada; para a poção mágica,
tudo! Guarda-se a aparência de ciência, transgredindo todos os seus
critérios e protocolos. O Brasil tornou-se uma ilha de insanidade no
mundo!
A
emulação – Governantes devem dar o exemplo, que se multiplica no
comportamento dos seus cidadãos. Bons exemplos produzem atitudes
correspondentes; maus comportamentos criam os seus próprios. Se a
ciência é desprezada ostensivamente, ganha curso um vale-tudo na
população. Se o presidente não usa máscara, sendo a autoridade máxima,
por que o cidadão comum haveria de fazê-lo? Se recomenda a poção mágica,
por que as pessoas não deveriam tomá-la? Se não respeita aglomerações,
por que as pessoas ficariam reclusas e separadas umas das outras? O
bolsonarismo encarna precisamente esse tipo de comportamento, propagando
a destruição como se fosse a nova normalidade, o que foi chamado de
“nova política”. Essa forma de congraçamento no desprezo do outro, na
ausência de solidariedade, tem o seu contrapeso na identificação com o
líder e na fraternidade dos companheiros na pulsão de morte.
O
juízo final – O espetáculo é aterrador. O vírus avança, sem limites,
“contente da vida”, encontrando nos humanos a sua melhor forma de
reprodução. Ele encontra uma “solidariedade” do avesso nos governantes
que lhe deixam agir livremente, como se a liberdade fosse a devastação
generalizada. Tânatos se propaga, enquanto as pessoas festejam nas ruas e
praias, em bares e cafés, como se nada mais restasse senão dançar e
cantar antes que a destruição encontre o seu ápice. A imagem bíblica que
vem à mente é a de uma espécie de juízo final se aproximando, como se
nada mais pudesse ser feito, como se nada mais fosse digno de esperar,
como se ainda fosse possível uma “imunidade de rebanho”, na verdade um
rebanho de humanos tomados pela insanidade.
A esperança hoje reside na volta à racionalidade.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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