Na França, é cada vez mais evidente o namoro com o autoritarismo sob o disfarce da racionalidade, da competência administrativa, do bem comum, da justiça social. J. R. Guzzo, na edição da Oeste deste final de semana:
Bem
pouca gente ouviu falar muita coisa a respeito da história que será
contada a seguir — é praticamente impossível, hoje em dia, ler, ouvir ou
ver informações sobre fatos que estorvam a visão do certo e do errado
que existe na cabeça da mídia mundial. Mas o fato é que acaba de ser
cometido na França um ataque especialmente vicioso, pervertido e
hipócrita contra a liberdade de expressão. Em perfeita simetria com a
intenção dos seus autores, é também uma missa cantada para celebrar a
submissão do indivíduo ao Estado — e promover um novo avanço da
autoridade pública em sua escalada para tornar-se o elemento mais
valioso, e mais privilegiado, da sociedade francesa.
Foi
aprovada, agora neste final de novembro, uma prodigiosa sequência de
atos destinados a proteger a polícia dos cidadãos em geral — e sobretudo
dos jornalistas. Você não leu errado. É isso mesmo: o governo do
presidente Emmanuel Macron, com o apoio maciço dos deputados da
Assembleia Nacional, declarou que a população se tornou um perigo para o
Estado francês e para os seus agentes. Em consequência, tem de ser
tratada com repressão. A desculpa é aumentar a segurança dos policiais
no combate ao terrorismo — e punir os cidadãos com sanções penais caso a
polícia decida que está sendo posta em risco por eles.
A
partir de agora, por força do Artigo 24 da “Lei de Segurança Global”
que acaba de ser aprovado, as pessoas estão sujeitas a um ano de prisão e
a € 45 mil de multa (ou perto de R$ 300 mil) se divulgarem “a imagem do
rosto ou de qualquer outro elemento de identificação de um policial ou
de um gendarme em ação de serviço”. Ou seja: os repórteres fotográficos,
ou quem mais estiver com a câmera do seu celular ativada, ficam
legalmente proibidos de registrar, por exemplo, imagens de policiais
baixando o cacete em qualquer tipo de manifestação pública, ou prendendo
cidadãos suspeitos de não observância do “distanciamento social”. Para
amarrar a coisa pelos sete lados, o Artigo 24 também exige que os
veículos de comunicação apaguem o rosto de policiais de qualquer foto ou
vídeo que porventura vierem a obter e a publicar.
O
veneno contido na lei teve efeito imediato: dois jornalistas já foram
detidos ao cobrir manifestações de protesto contra o próprio Artigo 24.
Está claro que o propósito do governo Macron, dos deputados que lhe dão
apoio e dos sindicatos de policiais é reprimir os cidadãos e jornalistas
que querem (ou precisam) registrar atos de violência ilegal e de
arbitrariedade cometidos pela polícia — e não proteger seus agentes do
terrorismo. O ministro do Interior, que foi o principal corretor público
da nova legislação, admitiu que não tem nenhuma estatística a respeito
de casos em que a captação e a divulgação de imagens de policiais possam
ter provocado algum ataque contra eles. Também não soube informar
quantos funcionários da polícia, até hoje, foram importunados
socialmente por verem a sua atividade divulgada em público. O que
sobrou, no fim das contas, foi a prisão e a multa.
A
lei diz que as punições deverão se limitar aos casos em que houver a
intenção deliberada, por parte de quem gravou as imagens, de atentar
contra a “integridade física ou psíquica” dos policiais — mas, na
prática, é a própria polícia quem vai decidir se a imagem foi captada
com malícia ou de forma inocente. O que você acha que vai acontecer na
vida real? No caso dos repórteres fotográficos, por exemplo: sua função
profissional inclui, obrigatoriamente, o registro da presença da polícia
e das ações praticadas por ela durante uma manifestação pública, e sua
intenção é mesmo divulgar as imagens que colheu. Como é que fica, então?
Se a imagem com o rosto do policial for publicada no jornal ou na
televisão, ele estará sujeito, por definição, a um atentado terrorista.
Para cumprir a nova lei, portanto, o jornalista não poderá mais
fotografar ou filmar livremente nenhuma manifestação em que a polícia
esteja presente.
Para
piorar as coisas, o governo disse que os jornalistas deveriam se
“credenciar” perante as autoridades policiais para cobrirem atos
públicos em que haverá presença das forças de segurança — coisa que não
está escrita em nenhuma lei da França. Houve o cuidado de dizer que esse
pedido de licença não é “obrigatório” — mesmo porque isso seria tão
flagrantemente contra a Constituição francesa que acharam melhor não
forçar a mão. Mas as autoridades lembraram, ao mesmo tempo, que o
“credenciamento” tem a vantagem de permitir que a polícia forneça
“proteção” aos repórteres durante as manifestações. Juram que isso não é
uma ameaça velada — e ficaram de fazer uma emenda dizendo que a
proibição de registrar as imagens deve ser feita “sem prejuízo do
direito de informar”. Também acenaram com o estabelecimento de critérios
mais claros para caracterizar a intenção de atentar contra a
integridade dos policiais. Nenhuma das duas coisas vai mudar nada.
A
pergunta que interessa, depois disso tudo, é a seguinte: existe no
Brasil alguma coisa parecida com esse Artigo 24? Não existe nem nunca
existiu — na verdade, é provável que nunca tenha passado pela cabeça de
ninguém fazer algo assim por aqui. Imagine-se, agora, o que o presidente
Macron, seus admiradores e as classes intelectuais, jornalísticas e
bem-educadas da França estariam dizendo se o presidente Jair Bolsonaro
mandasse para o Congresso Nacional um projeto de lei propondo exatamente
o que o governo francês acaba de fazer. (Pior: e se a ideia viesse de
Donald Trump? É melhor nem pensar.)
No
mundo das ideias, o Brasil visto da França de Macron e dos Estados
Unidos de Joe Biden é um inferno político onde a população é oprimida
diariamente por uma ditadura militar-fascista, que persegue os índios,
os negros, os gays, as mulheres e os pobres — além de queimar a Amazônia
e praticar o genocídio, porque o presidente não usa máscara, promove
“aglomeração” quando fala em público e recomenda o uso da cloroquina. No
mundo dos fatos, a França está jogando na cadeia repórteres que
fotografam ou filmam policiais em manifestações de rua.
A
nova “Lei de Segurança Global” é uma aula magna sobre a progressiva e
inquietante descida da França em direção ao totalitarismo estilo 2020 —
essa mistura pretensamente fina de supressão das liberdades individuais
com a transferência cada vez maior das decisões para a esfera dos altos e
médios servidores das máquinas estatais, das nações ou das entidades
“globais”. (A propósito: a proibição de captar imagens leva o nome de
“Lei Global”.) Não é algo que esteja acontecendo só na França. Na
Alemanha, praticamente no mesmo dia, a maioria governista que controla o
Parlamento aprovou a supressão de direitos individuais inscritos na
Constituição alemã para pôr em vigor a sua “Lei de Prevenção das
Infecções”, com restrições que vão da suspensão de liberdades por conta
do lockdown até a vacinação obrigatória. (Levantaram-se, na hora,
lembranças da “Lei Habilitante” de março de 1933, na qual esse mesmo
Parlamento, então chamado Reichstag, deu plenos poderes a Adolf Hitler.)
É
o avanço, nas democracias tidas como as mais avançadas do mundo, da
ideia geral de que as pessoas, no fundo, não sabem o que é bom para
elas; para não serem enganadas pelo “populismo”, que as leva a escolher
indivíduos inconvenientes para os governos, devem se submeter a um novo
“contrato social”. Por esse contrato, a autoridade, basicamente, deve
ficar a cargo dos que têm “qualificação técnica” para governar — as
camadas superiores dos ministérios disso ou daquilo, os altos burocratas
dos organismos internacionais, do FMI à Organização Mundial da Saúde,
os detentores do saber universitário e os funcionários públicos que se
encontram entre um galho e outro dessa árvore toda. À população cabe
cumprir ordens — da proibição de fazer uma imagem à obrigação de tomar
vacina.
É
um namoro cada vez mais incontrolável com a tirania — sob o disfarce da
racionalidade, da competência administrativa, do bem comum, da busca da
igualdade, da justiça social, da ajuda às minorias, aos imigrantes, aos
pobres e outras lorotas. Trata-se, na verdade, da maior fraude
ideológica em curso no mundo de hoje. Ninguém, no fundo, está
interessado em ajudar imigrante nenhum. O que os burocratas que ocupam
bons lugares no aparelho estatal estão realmente querendo — seja nos
países, seja nos órgãos transnacionais — é mandar. Quanto mais mandarem,
mais seguros estarão nos seus altos salários, seus cartões de crédito
“corporativos”, suas aposentadorias com remuneração integral e o resto
da festa. Seu lema é: “Cada vez mais governo, mais ‘protocolo’ e mais
poder para quem não foi eleito — e cada vez mais obediência por parte
dos demais”.
A
própria aprovação da Lei de Segurança Global, em si, é um prefácio para
esse mundo escuro que está se formando nas nações mais bem-sucedidas do
mundo. A Assembleia Nacional da França tem 577 deputados. Para a sessão
em que o seu Artigo 24 foi aprovado compareceram apenas 170, ou 30% do
plenário total — e a votação acabou ficando em 146 a favor e 24 contra.
Para que serve, então, um Parlamento desses? Parece o Congresso da
Venezuela, de gravata Hermès e bolsa Vuitton. A reação dos franceses, ao
mesmo tempo, foi de uma apatia capaz de lembrar a postura geral dos
chineses diante da ditadura em vigor em seu país.
Na
China, há uma espécie de “contrato social” que diz o seguinte: “Nós
damos comida, trabalho, roupa e iPad para vocês. Em compensação vocês
obedecem”. Ninguém precisa dizer que França e China são coisas
diferentes; até uma criança com 10 anos de idade sabe disso. Mas chama
atenção o fato de haver paralelos entre os dois países, em matéria de
comprar o silêncio da população. Na França, a tendência é de se
conformar com as decisões de “l’État” por conta do salário-desemprego,
dos “benefícios sociais”, das verbas para a família, dos subsídios para o
agricultor, para o pequeno empresário, para o grande empresário, da
ajuda disso, do auxílio daquilo, dos “direitos adquiridos”, da
meia-entrada e, mais do que tudo, dos privilégios da burocracia estatal.
Faz uma tremenda diferença, num país que tem hoje 5,5 milhões de
funcionários públicos — cerca de 8% da população nacional, e nada menos
do que 20% da população economicamente ativa (ou um em cada cinco
franceses), descontando-se aí os 3 milhões de desempregados atuais. Para
chegar a esse nível, o Brasil teria de ter entre 17 milhões e 18
milhões de servidores públicos; temos 12 milhões, nos três níveis.
É
o bioma ideal para o cultivo de ditaduras do modelo
liberal-social-democrático-equilibrado-centrista-progressista-europeu-civilizado
que tanto encanta as classes intelectuais do Brasil de hoje, nesse
grande arco que vai dos beneficiários do Bolsa Ditadura a Luciano Huck,
passando pelo DEM, por Benedita da Silva e por outros colossos da
política nacional. Se é bom para a França, deve servir para o Trópico.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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