No atual cenário social, econômico e político, hipótese de retrocesso não pode ser descartada. Artigo do professor Bolívar Lamounier para o Estadão:
Se
você acredita que o Brasil está progredindo a um ritmo medíocre, está
certo; se pensa que estamos na iminência de um retrocesso grave, é
provável que esteja certo também.
Só
estará errado se achar que dispomos do tipo e do montante de
conhecimentos de que vamos precisar para sair desta enrascada em que há
anos nos vimos arrastando. Afirmação arrojada, bem o sei. No transcurso
das últimas três ou quatro décadas, as pesquisas de opinião e os
levantamentos do IBGE têm nos proporcionado uma montanha de informações
de altíssimo valor. O problema, creio eu, é que tais informações não
respondem em sua inteireza às indagações que se imporão quando nos
depararmos com o inexorável desafio de reformar a sério nossa sociedade e
nossas instituições políticas.
Ao
dizer “inexorável”, peço permissão para passar ao largo do mar de
mazelas que debatemos dia sim e outro também: estagnação econômica,
desigualdades abissais, nível médio de escolaridade abaixo da crítica e
condições sanitárias cujas deficiências conhecíamos de longa data, mas
sobre as quais agora, com a pandemia, não cabe mais discussão. Tampouco
me parece caber dúvida quanto à persistente perda de consistência das
instituições: da alta administração pública, civil e militar, assim como
do Legislativo e do Judiciário.
Volto
aos conhecimentos de que necessitamos. A montanha de informações de que
dispomos se compõe basicamente de dados “atomizados”, quero dizer,
colhidos por meio da aplicação de questionários a indivíduos isolados e
depois agrupados em categorias (classes A, B, C, D, diferenças entre
grandes e pequenos municípios, etc.). Os resultados de tais operações
não são grupos reais. Se nosso objetivo é evitar retrocessos e construir
um sistema político capaz de impulsionar o desenvolvimento, informações
desse tipo não são suficientes. Sociedades e sistemas políticos
assentam-se sobre estruturas, vale dizer, sobre tramas de relações
interindividuais e intergrupais, por sua vez amalgamadas por valores e
crenças que não se dão a conhecer ao primeiro estímulo de um
entrevistador.
Quem
deu um passo adiante foi o antropólogo Roberto DaMatta, ao dissecar a
expressão “você sabe com quem está falando?”. De fato, a proverbial
“carteirada” é um retrato da estratificação autoritária que permeia
nossa sociedade. Penso, no entanto, que a necessidade de um indivíduo de
status superior se dirigir a um de status inferior ordenando-lhe pôr-se
“em seu lugar” indica que a estratificação já está sendo questionada.
Não precisaria fazê-lo caso se tratasse de uma estratificação estática,
imemorial.
Façamos
uma comparação com a França. Em 1920, em sua maravilhosa Busca do Tempo
Perdido, Marcel Proust evoca “... a ideia um tanto indiana que os
burgueses (de algum tempo atrás) formavam a respeito da sociedade,
considerando-a composta de castas fechadas, onde cada qual se via, desde
o nascimento, colocado na posição que ocupavam seus pais, e de onde
nada os poderia tirar para que penetrassem numa casta superior, a não
ser raros acasos de uma carreira excepcional ou de um casamento
inesperado” (vol. 1, pág. 21).
Vinte
anos mais tarde, em sua igualmente maravilhosa Suíte Francesa, Irène
Némirovsky trafega por um labirinto praticamente igual, o da França
invadida pelos nazistas. Claro, não tendo tido escravidão, os pobres
franceses não eram miseráveis desprovidos de tudo, como os nossos, nem
precisavam as camadas mais altas de recorrer à “carteirada”. A
estratificação, os limites prescritos nas interações e nos modos que os
indivíduos observavam ao se dirigirem uns aos outros, tudo era rígida e
minuciosamente regulamentado.
Voltando
ao Brasil, o que mais chama a atenção é a inexistência sequer de uma
classe média claramente delineada, com valores e padrões próprios de
comportamento. Nunca tivemos uma petite bourgeoisie assentada sobre a
pequena propriedade urbana ou rural. A maioria das camadas que têm o
privilégio do vínculo empregatício vive de empregos instáveis e de má
qualidade. Na área educacional do atual governo tivemos três ministros,
mas nenhum plano.
Tampouco
temos elites no sentido positivo da palavra, ou seja, grupos de pessoas
(com ou sem recursos econômicos vultosos) com vocação de exemplaridade,
devotados em alguma medida ao bem comum, e capazes de transitar pelos
diferentes setores funcionais da sociedade, agregando atitudes e
balizando o modo de agir dos três Poderes. Não estranha, pois, que
estejamos presenciando um processo de “desinstitucionalização”, com
sinais bem perceptíveis de deterioração em toda a extensão do tecido
político.
Sem
uma classe média robusta, sem elites no sentido que acabo de expor, com
um ritmo pífio de crescimento econômico e um sistema de ensino de
péssima qualidade, a hipótese do retrocesso não pode ser descartada. Nas
condições aventadas, as instituições democráticas tendem a perder
respaldo e robustez, permanecendo incapazes de impulsionar a economia,
vulneráveis às formas de corrupção mais obscenas e aumentando a
possibilidade de crises graves.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário