Não há virtude na censura e na cultura do cancelamento dessa milícia clandestina. Carlos Alberto Di Franco, via Estadão:
A
milícia anônima Sleeping Giants Brasil começou uma campanha de boicote à
Gazeta do Povo, de Curitiba, justificada pelo fato de o jornal ter
decidido manter em seu quadro de colaboradores o colunista Rodrigo
Constantino. No dia 6 de novembro, Constantino fez um comentário
controverso e infeliz sobre um caso de estupro. Embora se tenha
desculpado por suas colocações e reiterado sua posição contrária a
qualquer forma de violência sexual, o jornalista acabou sendo desligado,
nos dias que seguiram, de suas atribuições na Jovem Pan e em outros
veículos em que trabalhava.
A
Gazeta do Povo, por sua vez, entendeu que Constantino foi “envolvido em
uma falsa acusação de apologia do estupro” e considerou satisfatórios
as explicações e o pedido de desculpas do jornalista. Ato contínuo, o
Sleeping Giants demandou que os anunciantes boicotassem a Gazeta e,
assim, ameaçassem a viabilidade financeira de um jornal com cem anos de
existência e tradição de seriedade. O que pretendem é que o diário feche
as portas.
O
Sleeping Giants Brasil, que exibiu viés ideológico desde sua origem, no
começo deste ano, iniciou sua atividade no País se vendendo como um
movimento de caráter neutro, cujo único objetivo seria evitar a
propagação de fake news por meio do boicote. Mas, nos últimos meses, a
escolha enviesada de seus alvos escancarou um posicionamento político
claro. Figuras públicas de esquerda são poupadas. Vozes liberais e
conservadoras são perseguidas. O modo de atuação e os objetivos finais
do Sleeping Giants ficam, por esses primeiros casos, explicitados:
constranger e intimidar anunciantes que deem sustentação financeira a
organizações de mídia que não estejam em sintonia com sua agenda
ideológica.
Protegido
pelo anonimato, explicitamente vedado pela Constituição, e pela falsa
aura de proteção dos direitos humanos, o grupo brasileiro dissimula seu
viés político e convence muitas empresas a aderir ao boicote,
especialmente pelo impacto que o número de interações provoca nos
tomadores de opinião das companhias.
Embora
nos Estados Unidos os fundadores do Sleeping Giants se tenham tornado
conhecidos – Nandini Jammi e Matt Rivitz –, os apoiadores e gestores de
suas contas no Twitter e no Facebook no Brasil nunca foram
identificados. Suas campanhas mais bem-sucedidas no País foram
direcionadas para o boicote aos portais Conexão Política e Brasil Sem
Medo, além de conseguirem fazer que os vídeos de Olavo de Carvalho
fossem desmonetizados e seus cursos online não mais pudessem ser pagos
via plataforma PayPal.
A
organização apresenta-se aqui como defensora de “uma luta coletiva de
cidadãos contra o financiamento do discurso de ódio e das fake news”, o
que nos leva à discussão de quem é capaz de determinar o que é um
“discurso de ódio”. Inevitável lembrar a conhecida pergunta elaborada
pelo poeta romano Juvenal, há quase 2 mil anos: “Quis custodiet ipsos
custodes?” – que poderíamos traduzir como “quem fiscalizará os
fiscalizadores?” ou “quem há de vigiar os próprios vigilantes?”.
Todos
devem ter o direito de expressar o que bem entenderem, sabendo que há
consequências previstas na legislação para os casos em que haja calúnia,
injúria ou difamação. Não é necessário nem desejado que um verdadeiro
tribunal de exceção, por meio da intimidação dos anunciantes, como esse
promovido pelo Sleeping Giants, seja estabelecido. As ações de
cancelamento nada mais são que agressões escancaradas à liberdade de
expressão. E o anonimato, covarde e imoral, só desqualifica seus
autores.
Para
Marcelo Rech, presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), a
liberdade de expressão não se constrói com base em intimidações. “A
verdadeira liberdade de expressão não é apenas a liberdade de eu me
manifestar livremente, mas sobretudo de admitir que outros, por mais
reprováveis que possam ser as manifestações e contanto que não firam as
leis, tenham o direito de se expressar sem medo de represálias. A
liberdade de expressão não se constrói com intimidações ou restrições a
manifestações, mas com mais liberdade e ainda mais pluralidade”,
sublinhou Rech.
Um
jornalista ou qualquer um que difame, calunie, distorça, minta, emita
uma posição controversa ou não politicamente correta, agrida valores
fundamentais da sociedade ou dos veículos para os quais trabalha, ou que
se mostre simplesmente pouco qualificado em suas investigações,
análises e conclusões, pode ser processado por quem se sentir
indevidamente atacado ou desligado de suas funções por seu empregador.
Por
outro lado, qualquer tentativa de pressão, coação, ameaça, chantagem,
“cancelamento” ou linchamento virtual deve ser interpretada como uma
intimidação descabida, ilegal e imoral de calar vozes dissonantes e que
contrariam os interesses e visões dos eventuais e pretensamente isentos –
e, para completar, anônimos – “checadores de fatos”. Uma democracia não
se pode curvar às ameaças de milícias anônimas. Não há virtude na
censura e na cultura do cancelamento.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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