Startups lançam máquinas que criam o alimento a partir de plantas e moléculas de animais e podem iniciar uma revolução na indústria:
Em
1984, um estudante de engenharia perguntou ao americano Chuck Hull,
inventor da impressora 3D, qual seria o futuro da máquina que, àquela
altura, reproduzia formas rudimentares de resinas. “Vai chegar o dia em
que seremos capazes de imprimir qualquer coisa, até mesmo um automóvel”,
disse Hull. Ele estava certo, mas nem tanto. Na verdade, as máquinas
foram muito além do que a sua imaginação pôde conceber. Atualmente, a
tecnologia, de fato, é capaz de produzir qualquer tipo de objetivo
inanimado — qualquer um mesmo. De barcos a casas. De próteses a armas.
Isso, porém, não é exatamente novidade. A mais recente aplicação das
impressoras 3D é ainda mais surpreendente e pode levar a caminhos
inesperados. Os cientistas descobriram que os aparelhos são capazes de
dar vida a suculentas carnes sintéticas, desde que sejam utilizados os
ingredientes corretos.
A
iniciativa é liderada pela empresa israelense Redefine Meat, que
apresentou recentemente ao mercado a sua inédita impressora. As máquinas
devem ser alimentadas com uma combinação de plantas e moléculas
bovinas. Alguns minutos depois, elas imprimem filés que, pelo menos
visualmente, são idênticos aos bifes tradicionais. Segundo a Redefine,
startup criada em 2018 com a ambição de revolucionar o setor de
alimentos, o sabor remete a carnes de verdade, nem de longe lembrando um
produto sintético. “Conseguimos obter a mesma consistência de um bife
convencional, inclusive imitando músculos e gorduras”, diz Alexey
Tomsov, engenheiro da companhia. As máquinas foram concebidas para
imprimir 20 quilos por hora, o suficiente para abastecer um restaurante
de porte médio. A ideia é inicialmente levar a novidade para pequenos
bistrôs ainda em 2020, e oferecer o equipamento ao mercado, para
qualquer um que quiser comprá-lo, no começo de 2021. O preço não foi
definido.
As grandes empresas estão atentas ao novo segmento. A rede americana de fast food KFC, uma das maiores do mundo, vai testar no mercado russo, em parceria com a startup 3D Bioprinting Solutions, nuggets feitos por impressoras. Assim como o equipamento da Redefine Meat, as máquinas usam como ingredientes plantas e, nesse caso, moléculas de frango. Em poucos minutos, imprime-se um balde cheio de nuggets, com a vantagem adicional de que nenhum animal precisou ser sacrificado. Eis aí o fator que encanta ambientalistas: as carnes fake, obviamente, têm potencial para preservar milhões de vidas. “Sempre haverá pessoas criando e comendo animais”, disse em uma palestra nos Estados Unidos o cardiologista Uma Valeti, fundador da startup Memphis Meats, uma das principais empresas de carnes sintéticas do mundo. “Mas, pela primeira vez na história da humanidade, estamos perto de oferecer em larga escala um bife suculento, igualzinho à carne da vaca que estava pastando no campo, mas que foi 100% criado em laboratório.”
As
carnes produzidas em laboratório podem levar a uma radical
transformação na indústria de alimentos. Uma pesquisa feita pela
Universidade de Oxford, no Reino Unido, identificou trinta empresas que
tentam recriar em laboratório carnes idênticas às consumidas hoje em
dia. Antes das impressoras 3D, porém, os projetos eram caros e
demorados, o que inviabiliza a execução. Com os equipamentos de
impressão, espera-se que o setor ganhe novo dinamismo, e provavelmente
não vai demorar para que as carnes fake fabricadas por uma máquina
instalada no fundo de uma cozinha constem no cardápio de restaurantes
estrelados. Não à toa, jovens companhias como a Memphis Meats, uma das
maiores do ramo, contam com investidores pesos-pesados. Entre eles, Bill
Gates, fundador da Microsoft, e Richard Branson, criador da Virgin. Uma
das principais empresas de alimentos do mundo, a americana Cargill
desembolsou dezenas de milhões de dólares para alavancar a Memphis
Meats.
O
avanço das impressoras pode levar à impressão de carne de verdade. Um
artigo publicado pela revista científica Science apresentou detalhes de
um experimento realizado na Estação Espacial Internacional. O cosmonauta
russo Oleg Kononenko imprimiu no espaço células de cartilagem humana
usando um equipamento criado pela empresa russa de biotecnologia
Bioprinting Solutions. O método baseia-se em imitar o processo natural
de regeneração do tecido muscular, mas sob condições controladas.
Segundo Kononenko, a máquina 3D também foi capaz de produzir no espaço
glândulas tireoides de ratos. Trata-se de algo realmente espetacular.
Significa que, no futuro, as tripulações poderão imprimir seus próprios
alimentos, incluindo carnes de laboratório. Se tudo der certo, elas
serão tão saborosas quanto um belo pedaço de picanha.
Publicado em VEJA de 30 de setembro de 2020, edição nº 2706
BLOG ORLANO TAMBOSI
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