"Não concordam que somos todos responsáveis pela ausência de valores?. Coluna de Luiz Felipe Pondé, via FSP:
É possível ter esperança no mundo? Esse é um tema que me tem ocupado
nos últimos tempos. Formas de autoajuda de esperança são uma indústria
mau caráter. Do ponto de vista filosófico, o olhar trágico é o mais
qualificado para falar da esperança, justamente porque nele a esperança
não existe e, quando existe, é na forma da esperança de Pandora: uma
maldição, no mínimo um erro causado pela desmedida humana de crer em si
mesmo.
Afora esse nível mais filosófico, o dia a dia se faz fonte de
desesperança: saturação de chatices por toda parte, polarização
pentelha, opinionismo de pessoas de 12 anos que querem reger o mundo,
boçalidade dos reacionários, desorientação política, a mentira como
protocolo do conhecimento; enfim, motivo não falta para
desesperança.Albert Camus (1913–1960) foi um autor trágico (sua
filosofia do absurdo é uma filosofia trágica). Nos “Cadernos” de 1942 a
1951, Camus se pergunta: “Não concordam que somos todos responsáveis
pela ausência de valores? E se nós, que viemos todos do nietzschianismo,
do niilismo e do realismo histórico, anunciássemos publicamente que
estávamos enganados; que há valores morais e que de agora em diante
vamos fazer o que tem de ser feito para os estabelecer e os ilustrar.
Não acham que isso podia ser o começo da esperança?”.
Essa pergunta de Camus rasga sua vida: é possível ter esperança no
mundo? Essa não é para iniciantes. Na citação acima, Camus nos acusa
(principalmente aqueles que podemos chamar de “cultos”) de sermos
responsáveis pelo caos moral em que vivemos. Provavelmente, ainda mais
hoje em dia, mergulhados no oba-oba das modas de comportamento, estamos
bem longe dessa consciência de que fala Camus.
Sermos nietzschianos aqui significa acreditar que a moral seja uma
criação dos “fracos”. A filosofia de Nietzsche é poderosa, mas existem
mesmo esses “fortes” em direção aos quais deveríamos caminhar como
projeto de vida pessoal? Sermos niilistas significa crer que não há
valores, nem verdades, nem mentiras. Tudo é uma criação histórico-social
e, portanto, pode ser posto abaixo a partir de qualquer intenção
articulada.
Afirmar que tudo é narrativa (como afirmam historiadores, filósofos e
psicólogos) é mais do que meio caminho andado para o niilismo.
Acreditar no realismo histórico significa sermos marxistas e crermos na
violência como parteira da história.
Em suma, tudo chique, sofisticado, erudito, ensinado nas escolas, nas
universidades e descritos em artigos na imprensa, ou mesmo nos púlpitos
das igrejas. Normalmente, usamos argumentos dessas três matrizes com
“boas intenções”. Contra preconceitos, contra opressão de vítimas
sociais.
O que percebe Camus, e muita gente até hoje não percebeu (ou,
simplesmente, mente), é que todo esse “ensino relativista”, seja lá de
que viés for, é produtor de niilismo, o que não significa dizer que o
relativismo, nas suas diversas modalidades, não seja verdade.
E aqui reside o núcleo da tragédia moral percebida por Camus. Aliás,
como reconhece o próprio historiador Tony Judt, Camus aqui encontra o
filósofo britânico Isaiah Berlin (1909–1997): os valores podem entrar em
choque uns com os outros, isto é, duas verdades podem entrar em
conflito e não haver resposta conciliatória.
Eu arriscaria dizer que a linha divisória entre a infantilidade e a
maturidade está aqui: nem sempre encontramos uma saída que não seja, em
alguma medida, infeliz ou, no mínimo, apenas “mediana”.
A pergunta que nosso filósofo do absurdo faz é se não deveríamos
assumir a responsabilidade por termos, durante décadas, gozado com a
pura e simples destruição de todos os valores, da sala de aula à arte e
aos debates inteligentes na mídia. Professores desfilam discursos
demolindo todas as crenças, e os jovens, na sua estrutural ignorância,
gozam junto com eles.
Em meio ao capitalismo selvagem em que vivemos, é possível tomar como
possível essa proposta de Camus? Não sei. Seria ele ingênuo? Não creio.
Assumir que somos sim culpados pelo niilismo moral seria um começo para
a esperança. Feliz Ano-Novo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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