"E houve, claro, a oportuna carta de “intelectuais” portugueses a apelar
à derrota de um determinado candidato nas eleições presidenciais
brasileiras. A carta é engraçada por uma data de razões. Tem graça
porque, dos “intelectuais” em questão, cinco sextos jamais se
distinguiram pelo intelecto e a maioria distingue-se justamente pela
respectiva, e flagrante, ausência". O ferino humor de Alberto Gonçalves, voltando das férias nos EUA. Divirtam-se:
Ao longo da História, muitas batalhas aconteceram e muitos homens
morreram semanas depois de alcançada a paz. Bons tempos, marcados pela
demora nas comunicações, dependentes de cavalos, carroças e caminhos
tortuosos. Por azar, não pude viver essa época, em que uma pessoa saía
do país em viagem de férias, chacina ou catequização e ficava
impecavelmente privado de notícias locais. Com jeitinho, regressava-se e
descobria-se que, à custa dos fantásticos estadistas que temos, já não
havia país ao qual regressar. Passados seis meses, recebia-se um
telegrama a confirmar a falência.
Hoje as dificuldades são incomensuravelmente maiores. Apanho oito
voos (juro), alugo dois carros, afasto-me nove mil quilómetros de casa
e, contra todos os princípios terapêuticos, continuo a perceber, sem
perceber metade, o que sucede em Portugal. Culpo as “apps” do Facebook e
do Observador, que não resisto abrir com excessiva regularidade. À
semelhança de um voyeur à solta num motel, é impossível evitar a
espreitadela. E a ligeira melancolia que se lhe segue. Cada “facto
noticioso” é absurdo, e cada reacção ao “facto” mais absurda ainda.
Houve a “remodelação” do governo, em que, além de diversas mudanças
importantíssimas, o dr. Costa chutou para cima aquele funcionário do
partido que tem um coisinho na orelha. O assunto gerou a indispensável
indignação, como se a criatura em causa fosse substituir uma sumidade ou
ocupar a vaga de outra. Quem se zanga com escolhas assim está,
deliberadamente ou não, a exibir um esboço de esperança que o arranjinho
no poder nunca mereceu. Por definição, a pertença ao culto faz de
qualquer um devoto, de igual direito e igual descaramento.
Houve um coitado que foi à televisão falar na violência que obriga as
crianças a beijar os avós. Entre a subsequente fúria das massas,
ninguém lembrou a violência que obriga os avós a beijar as crianças,
sejam estas “cientistas sociais” ou não.
Houve uma “jornalista”, cujo currículo consiste em frequentar a
intimidade de ladrões sem reparar nos roubos, inconformada com o uso de
“Até amanhã, se Deus Quiser” por uma apresentadora televisiva. É no que
dá distribuir o ateísmo pelas cabeças de fanáticos.
Houve o sr. prof. Marcelo a proferir frases acerca de Tancos e houve
pessoas bem-intencionadas – e irremediavelmente optimistas – a
prestarem atenção às frases que saem da boquinha do sr. prof. Marcelo,
colocando-as a ocupar o espaço que deveria pertencer à informação.
Houve a publicação de novo livro de memórias do prof. Cavaco e a
esquerda em peso saiu esbaforida para garantir, aos berros, que as
opiniões do prof. Cavaco não possuem nenhuma relevância. A título de
alívio cómico, alguns senhores do PS lembraram a falta de “sentido de
Estado”.
Houve o anúncio (necessariamente discreto) de que, por obra do dr.
Centeno e com a cumplicidade, demonstrável em tribunal, dos que ergueram
o dr. Centeno a algo diferente de uma nulidade com dentes, as nossas
contas terminaram 2017 com o segundo maior défice e a terceira dívida
mais elevada da União Europeia.
E houve, claro, a oportuna carta de “intelectuais” portugueses a
apelar à derrota de um determinado candidato nas eleições presidenciais
brasileiras. A carta é engraçada por uma data de razões. Tem graça
porque, dos “intelectuais” em questão, cinco sextos jamais se
distinguiram pelo intelecto e a maioria distingue-se justamente pela
respectiva, e flagrante, ausência. Tem graça porque, se tomarmos os
espécimes à exacta medida do que valem, tudo o que envolve o dr. Louçã e
o prof. Freitas – “intelectuais” na perspectiva de um maquinista da CP –
contém inegável potencial humorístico. Tem graça porque há um evidente
efeito paródico em ver a aflição dedicada ao Brasil por sujeitos que não
vivem e não votam no Brasil, o mesmo efeito que teria uma carta de
“intelectuais” argentinos a propósito das eleições no Ruanda. Tem graça
porque o “perigo” que os “intelectuais” referem paira sobre um
território arrasado pela corrupção, estrangulado pela miséria e inviável
pelo crime. Tem graça porque boa parte dos “intelectuais” legitimaram
pelo silêncio ou apoiaram pela palavra os bandos responsáve3is pela
corrupção, pela miséria e pelo crime. Tem graça porque o receio dos
“intelectuais” face ao hipotético fim da liberdade no “país irmão” (?)
não se verifica na real inexistência da dita em países primos, sobrinhos
e cunhados. Tem graça porque, cá dentro e lá fora, o único esforço de
tantos dos citados “intelectuais” a pretexto da democracia consistiu, e
consiste, em lutar pela sua abolição. Tem graça porque uma curiosa
quantidade desses “intelectuais” é, sem tirar nem pôr, comunista. Tem
graça porque os “intelectuais” chamam “fascista” ao sr. Bolsonaro após
chamarem “fascista” a Trump, Passos Coelho, Bush filho, Bush pai,
Cavaco, Thatcher, Reagan, Sá Carneiro e, imagine-se, até ao prof.
Freitas, agora absolvido do Mal e prova ambulante da redenção. Tem graça
porque, dado o currículo dos “intelectuais” que se lhe opõem, o sr.
Bolsonaro, que por acaso emite palpites um bocadinho fascistas e é sem
dúvida um burgesso, é capaz de esconder duas ou três virtudes.
Confesso que não as encontrei, mas também não procurei. E não
tenciono procurar. Interessar-me pela demência brasileira com a
portuguesa à minha disposição é um luxo e um masoquismo escusados.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário