O livro 'The Dawn of Everything' sintetiza formas de liberdade praticadas no período por muitas culturas. Luiz Felipe Pondé via FSP:
Seria
possível partir de achados da pré-história e sustentarmos propósitos
como o do evento do início deste século conhecido como Occupy Wall Street? Viver assim seria viável para o Homo sapiens hoje?
O livro "The Dawn of Everything, A New History of Humanity",
ou o alvorecer de tudo, uma nova história da humanidade, escrito a
quatro mãos por David Graeber —morto precocemente em 2020 com 59 anos— e
David Wengrow, publicado no Brasil pela Companhia das Letras,
é uma obra magistral para os amantes da pré-história e da história e do
que podemos aprender com elas. Mas a militância dos autores querendo
provar que a pré-história sustenta a plataforma política da esquerda do
partido democrata americano põe em risco a leitura.
A
obra se alimenta de achados recentes para pôr em questão interpretações
comuns de que a história da espécie seria uma linha reta que nos
levaria, necessariamente, de ancestrais violentos à violência do mundo
dos ricos de hoje em dia.
Tal
interpretação linear e fechada, aparentemente, justificaria de forma
pretensamente científica que a humanidade sempre teve, e só tem, um
caminho a seguir: a violência produtora de desigualdade e os interesses
egoístas como matriz de onde emergiriam as formas sociais e políticas.
Vale
dizer que estudos sobre a pré-história das religiões reforçam em grande
medida o impacto que as práticas violentas tiveram em nosso imaginário
espiritual —sacrifícios de humanos e animais e culto de espíritos
malignos poderosos. Não são amadores os investigadores que discutem tais
temas torturantes nem trabalha para bancos o 1% dos bilionários do mundo.
Outras
obras importantes já levantaram questões semelhantes que buscam
relativizar a interpretação linear da eterna violência necessária de
nossa ancestralidade.
Investigadores como Alain Testart e
seu "L’Amazone et la Cuisinière, Anthropologie de la Division Sexuelle
du Travail", ou a amazona e a cozinheira, antropologia da divisão sexual
do trabalho, ou investigadoras como Marylène Patou-Mathis
e seu "Préhistoire de la Violence et de la Guerre", ou pré-história da
violência e da guerra, investem em questionar uma pré-história dominada
pelo terror como moto-contínuo.
Ambos
os investigadores põem em cena a figura feminina não apenas como o
clichê clássico da mulher pré-histórica como objeto ou serviçal.
Para
alguém familiarizado com a fortuna crítica que trata da pré-história é
comum saber que os dados caducam à medida que a lenta arqueologia
avança. Graeber e Wendrow caminham por achados importantes até então.
O
coração da tese dos autores é que povos ancestrais foram capazes de
desenvolver formas sociais muito próximas ao que poderíamos chamar de
liberdade. Formas sociais que não eram escravas da lógica produtiva.
Povos que experimentavam formas de vida desburocratizadas, assim como
reis que na verdade não mandavam nada.
São
as seguintes formas de liberdade sintetizadas pelos autores como
praticadas na pré-história por muitas culturas, presumivelmente: 1) A
liberdade de ir embora e se instalar longe do grupo originário. 2) A
liberdade de desobedecer ou ignorar ordens de terceiros. 3) A liberdade
de criar formas completamente novas de vida social e de ir e vir entre
elas.
Daí
parte a hipótese de que a pluralidade de formas sociais ancestrais
poderia dar suporte a movimentos como Occupy Wall Street. Nosso passado
pré-histórico teria sido, na verdade, mais libertário do que a nossa
modernidade capitalista amante da burocracia, da violência e do
dinheiro.
A
dúvida é: como uma humanidade atual, com 7 bilhões de pessoas querendo
ser feliz comprando lixo, imersa em contenciosos jurídicos e políticos,
cercada por uma burocracia de gestão de multidões, viciada no ethos do
marketing digital, conseguiria se assemelhar a esses ancestrais
supostamente libertários e esparsos? Nenhuma das três liberdades
descritas aqui poderia ser posta em prática hoje sem muita violência,
devastação e autoritarismo.
A
pergunta que os autores nos legam é a de sempre, representada em mitos
religiosos. Se nossa pré-história era mais rica em beleza política e
social, por que, afinal, estamos nesse impasse há milênios?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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