Todos os que não são de esquerda estão destinados a ser Giorgia Meloni, e se por acaso ganharem eleições, já sabem: nesse dia, mais uma vez, a “extrema-direita” chegará ao poder pela primeira vez. Rui Ramos para o Observador:
Não
sei quantas vezes é que a “extrema-direita” chegou ao poder em Itália
pela primeira vez desde 1945. A minha impressão é que essa primeira vez
já aconteceu muitas vezes. Que me lembre, foi assim que foi recebido
Silvio Berlusconi em 1994, quando formou governo com o Movimento Social
Italiano. Mais recentemente, aconteceu em 2018, quando Matteo Salvini,
da Liga Norte, se tornou vice-primeiro ministro. São apenas dois
exemplos. Investigando, poderia certamente aumentar a lista das muitas
ocasiões em que a “extrema-direita” chegou ao poder em Itália pela
primeira vez desde 1945. De facto, é até provável que a primeira vez
tenha sido precisamente em 1945. Em Dezembro desse ano, o governo da
Itália passou a ser chefiado por Alcide de Gasperi. Ora, de Gasperi era o
líder da Democracia Cristã, a grande frente conservadora que os
comunistas denunciaram, desde a década de 1940, como a reencarnação do
fascismo.
Dir-me-ão:
mas desta vez é diferente. Como? Giorgia Meloni já fez parte do governo
entre 2008 e 2011. O partido de Meloni tem raízes fascistas? Vamos
também alarmar-nos por o Partido Democrata, a grande força de esquerda,
ter raízes comunistas? Ou não fará mais sentido pensar que seria
improvável, dada a influência que tiveram o fascismo e o comunismo em
Itália no século XX, que houvesse partidos de direita ou de esquerda que
não tivessem por aí alguns parentescos? A questão é saber se Meloni tem
como programa destruir a democracia liberal e impor uma ditadura de
partido único. Fascistas e comunistas tiveram esse programa. Meloni não
tem. Na Ucrânia, apoia Zelensky (para Putin, claro, prova que ela é
mesmo nazi). Estou com isto a dizer que nada há para discutir a seu
respeito? Não. Meloni tem ideias económicas más. Mas a rábula da
“extrema-direita” reduz o debate a saber se ela fez ou não a saudação
romana quando levantou o braço para acenar a alguém. O que, aliás,
deixa toda a gente contente: os inimigos de Meloni, que não têm de
enfrentar os problemas que ela cita, e a própria Meloni, que não tem de
dar conta das suas soluções.
Não
apenas em Itália, a direita partidária mudou nos últimos anos. Os seus
adversários aproveitaram para, como é hábito dos comunistas, passarem a
tratar toda a direita como “extrema-direita”, com a sua calculada
ressonância “fascista”. Nos EUA, o presidente Biden e o Partido
Democrata, perante o risco de perderem as maiorias legislativas nas
eleições de Novembro, insistem em que o Partido Republicano é agora uma
força extremista que ameaça a democracia. Esta “estratégia de tensão”,
fazendo de conta que todas as eleições são as eleições de Janeiro de
1933 na Alemanha de Weimar, não é saudável para uma democracia tal como,
aliás, o truque de fingir que só por racismo é que pode haver
preocupação com as migrações ilegais ou adesão às tradições nacionais:
tira ao regime a sua confiança e restringe o debate público. O cinismo
de tudo é demasiado óbvio, como se vê pelo modo como o alarme
anti-fascista é desligado sempre que interessa. Assim, Salvini,
antecessor de Meloni no papel de papão de “extrema-direita”, não
assustou enquanto foi um dos aliados parlamentares do eurocrata Mario
Draghi entre 2021 e 2022. Na Grécia, o partido Anel deixou de ser
chamado de “extrema-direita” quando passou a apoiar o governo do Syriza
entre 2015 e 2019.
A
tentação de demonizar o adversário é em política talvez a mais
irresistível. Perguntem ao ditador Putin, que na Rússia e fora da
Rússia, à boa maneira soviética, nunca encontrou oposição que não fosse
de “nazis”. Em Portugal, António Costa também já não consegue ver mais
ninguém contra o governo a não ser André Ventura. Ontem, acusou o líder
da Iniciativa Liberal de ser igual ao líder do Chega. Todos os que não
são de esquerda estão destinados a ser Giorgia Meloni, e se por acaso
ganharem eleições, já sabem: nesse dia, mais uma vez, a
“extrema-direita” chegará ao poder pela primeira vez
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