MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Perceber a história

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI


Esta é a primeira de seis newsletters do professor Rui Ramos, colaborador do Observador, sobre o liberalismo em Portugal (e publicada neste blog com exclusividade):


Esta é a primeira edição de “Perceber a História”. É uma newsletter para falar de História, nomeadamente de História de Portugal, mas não só. O objectivo não é apenas lembrar, mas sobretudo perceber. Sim, porque a História nos ajuda a entender muitas coisas: instituições e costumes, paisagens e ideologias, acontecimentos e personagens. E algumas que não fazem sentido quando vistas apenas do ponto de vista da actualidade, começam a fazer sentido quando encaradas a partir da História. Quando lhe acrescentamos o passado, o presente torna-se mais compreensível. Esta é uma newsletter que fala do passado para que entenda melhor o presente e também o futuro.

Seis textos para entender o liberalismo em Portugal. Este é o primeiro

Em 2022, passam duzentos anos que Portugal começou a ter constituições escritas de tipo moderno. O texto da primeira constituição foi aprovada pelas Cortes Constituintes em 23 de Setembro de 1822: mantinha a monarquia e o catolicismo como religião do Estado, mas concentrava o poder num parlamento periodicamente eleito pelos cidadãos e garantia a estes inúmeros direitos, entre os quais a liberdade de expressão. A época assim começada é conhecida na história de Portugal por “liberalismo”. Liberais foram Almeida Garrett e Alexandre Herculano, que ainda estudamos nas escolas. Liberais foram também uma grande parte dos personagens que deram nomes às ruas, avenidas e praças do país: se mora nas chamadas Avenidas Novas, em Lisboa, é provável que more numa rua ou avenida com o nome de um chefe político do liberalismo. O regime liberal durou até 1910, sob a forma de monarquia constitucional. O Portugal de hoje é um dos produtos desse século liberal: quase nada se percebe se não voltarmos ao século XIX, ao tempo do liberalismo. Isso é válido para a tradição das constituições escritas, mas é também válido para a maneira como escrevemos português. O que foi então o liberalismo? Comecemos pelo princípio.

O rescaldo de uma invasão

Começou com uma invasão estrangeira, a última até hoje na história de Portugal. Foi a 30 de Novembro de 1807 que a vanguarda do exército francês, sob o comando do general Junot, entrou em Lisboa. Os portugueses viram-se subitamente integrados, da maneira mais radical, na primeira união europeia moderna — a do Império francês e seus territórios subordinados. A 15 de Dezembro, assistiram à substituição da bandeira portuguesa pela francesa no castelo de S. Jorge, em Lisboa. Cerca de um mês depois, a 1 de Fevereiro de 1808, o general Junot anunciou que a dinastia de Bragança deixara de reinar em Portugal e ordenou que todos os actos do governo e dos tribunais portugueses passassem a ser feitos em nome de “Sua Majestade o Imperador dos Franceses, rei de Itália e Protector da Confederação do Reno”. Depois de séculos de história, Portugal perdia qualquer aparência de Estado soberano na Europa (o que não acontecera durante a união das coroas portuguesa e espanhola entre 1580 e 1640). Era apenas um território governado pelo comandante-em-chefe do exército francês de ocupação. Para que não ficassem dúvidas sobre quem era o novo senhor, Junot passou a ocupar o antigo camarote real no Teatro de S. Carlos em Lisboa.

O reino de Portugal seria restaurado logo no Verão de 1808, com a ajuda militar da Grã-Bretanha. Mas já não voltou a ser o que tinha sido antes. Os meses da ocupação haviam lançado as sementes da separação do Brasil e da abolição das antigas instituições e costumes do reino. O Portugal europeu tornara-se, para quase todos os efeitos, uma dependência inglesa. Os ingleses tinham ocupado a Madeira, o embaixador inglês fazia parte do governo da regência de Lisboa, o comando do exército português estava a cargo do general Beresford, e havia três oficiais ingleses por batalhão.

Mas não tinha sido só o governo em Lisboa a mudar de nacionalidade. Em Novembro de 1807, a família real e a corte tinham embarcado para o Brasil, de modo a não caírem nas mãos dos franceses. Mas a monarquia não se deslocou apenas para o Brasil. Tornou-se brasileira. Para perceber isso, é necessário desfazermo-nos de pontos de vista de hoje. Portugal em 1808 não era um Estado-nação, mas apenas parte de uma monarquia. Ora, D. Rodrigo de Sousa Coutinho (conde de Linhares), um dos mais importantes ministros entre 1796 e 1812, já concluíra que o Portugal europeu não era “a melhor e mais essencial parte da monarquia”. Essa “melhor e mais essencial parte” era o Brasil. Não era o único a pensar assim. Mais tarde, outro ministro de D. João VI seria mais claro: o reino de Portugal na Europa deveria estar para o Brasil como “Hannover a respeito da Grã-Bretanha” — era apenas o lugar donde viera o rei (os monarcas britânicos do século XVIII tinham começado por ser príncipes eleitores do pequeno Estado alemão de Hannover). O Brasil prometia muito: não só maior segurança, poupando a corte portuguesa às ameaças mais directas das potências europeias, como uma expansão que poderia tornar o rei de Portugal muito mais do que isso: imperador da América do sul.

Nos anos seguintes, o governo do Príncipe Regente fez do Brasil um Estado soberano, dotado das instituições correspondentes. Em 1815, deu-lhe o título de reino: o reino do Brasil. A presença da corte na América começou a unificar o Brasil, e preservou-o das revoluções e separatismo que afectou os vice-reinados e as capitanias-gerais espanholas da América. Quanto à corte portuguesa, tornara-se finalmente “independente”, capaz, por isso, de ambições imperialistas que levaram, depois de 1815, à conquista do Uruguai. Como notou um diplomata francês, D. João parecia preferir ser o “primeiro poder na América do sul” do que voltar a ter um “dos terceiros lugares na Europa”. Em Lisboa, tudo isto foi visto com horror. Desde cedo que se começou a perguntar quando voltaria a família real a Lisboa. Os anos passaram. Em 1820, treze anos depois da partida e seis desde o fim da guerra na Península, o rei continuava no Brasil.


Da guerra à revolução

Tal como em Espanha, também em Portugal surgiram em 1808 “juntas de governo” nas cidades e vilas da província. Foram o esforço das elites locais, no meio de muita agitação e tumultos, para preencher o vazio de poder criado pela retirada da família real e pelo colapso da ocupação francesa. Em Espanha, esse género de juntas acabaram por assumir a soberania, e em 1812, os seus representantes, reunidos em Cádis, deram uma constituição escrita à Espanha. Em Portugal, não se chegou aí. A família real estava longe, mas livre (ao contrário dos Bourbons espanhóis, prisioneiros de Napoleão). Não houve umas cortes de Cádis, mas criou-se um espaço público novo. A guerra desfez velhas reverências e hierarquias e politizou uma grande parte das elites provinciais, até aí afastadas da vida política nacional, reservada para a corte em Lisboa. Muita gente nova entrou nas vereações municipais. Acima de tudo, aumentou o debate público, através de uma imprensa subitamente muito mais livre e abundante. Durante as grandes crises militares, viveu-se mesmo um ambiente de discussão e de caos generalizado. Em 1809, em Braga, a população linchou o comandante do exército português, o general Bernardim Freire de Andrade, quando este decidiu uma retirada e o povo, amotinado, entendeu isso como uma traição. O ressentimento contra as elites da capital, suspeitas de terem colaborado com o general Junot em 1808, era enorme.

Na próxima semana continuarei a viagem por esse século liberal que ajudou a fundar o Portugal Moderno.

Rui Ramos é historiador, professor universitário, co-autor do podcast E o Resto é História [ver o perfil completo].

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