Nada tenho contra Draghi mas valorizo acima de tudo a democracia. Por isso, acho que é muito bom para a democracia italiana que a vencedora das eleições seja a próxima PM de Itália. João Marques de Almeida para o Observador:
É
impressionante como o chamado “pensamento de manada”, ou a recusa em
pensar de um modo independente, domina a análise e o comentário
político. A propósito das eleições em Itália (e também na Suécia), quase
todos os cronistas falam do “neo-fascismo”, do “pós-fascismo”, da
“extrema direita” sem pensar sobre o que estão a escrever e sobre a
validade e o rigor dos conceitos que usam. Escrevem isso porque os
outros que “pensam” como eles também o fazem. Parece que escrevem com
fórmulas copiadas e gastas em vez de argumentos bem pensados. Chegámos a
uma pobreza intelectual que mete dó.
Parece
óbvio que o eleitor comum (em cada vez mais países europeus) percebe
muito melhor o que é o fascismo do que os comentadores. A Europa não
ficou subitamente cheia de fascistas. Talvez fosse mais útil tentar
perceber esse eleitorado do que simplesmente tentar assustá-lo com a
palavra fascista. Não funciona. Além disso, a vulgarização do termo
fascismo é terrível: quem se preocupa verdadeiramente com a liberdade, a
justiça e a democracia não vulgariza uma ideologia que assassinou
milhões de pessoas e destruiu países inteiros. Se não querem aprender,
sejam pelo menos responsáveis.
Obviamente,
Meloni não é fascista. É uma conservadora e nacionalista, com algumas
semelhanças com os conservadores britânicos. Ao contrário dos comunistas
portugueses, na guerra da Ucrânia está ao lado de quem luta pela
liberdade nacional e pela democracia, contra o imperialismo militar
russo. Sim, defende “Deus, pátria e a família.” Mas isso não significa
ser “fascista”. A esmagadora maioria dos Católicos, dos patriotas e
daqueles que consideram a família como o elemento central das nossas
sociedades não é fascista. O facto de Mussolini ter usado a mesma
expressão, como alguns notaram, não serve para colocar Meloni na família
fascista. Stalin também usava a expressão “classe trabalhadora”, e isso
não significa que todos os socialistas e sociais democratas que também a
usam sejam comunistas.
Aliás,
vale a pena recordar uma data: 20 de Setembro de 2019, 80 anos depois
do início da Segunda Guerra Mundial. No Parlamento Europeu, o grupo dos
Conservadores, do qual o partido de Meloni faz parte, apresentou uma
resolução a condenar os crimes dos totalitarismos comunista, fascista e
nazi. Mais de 80% dos deputados europeus votaram a favor da resolução.
No caso dos representantes portugueses, o PS, o PSD, o CDS e o PAN
votaram a favor. O PCP e o Bloco votaram contra. Na questão política
mais importante da história europeia do século XX, democracia vs
totalitarismos, o PCP e o Bloco votaram ao lado dos totalitarismos, e o
partido de Meloni votou ao lado das democracias. No editorial de segunda
feira, o Director do Público mostra uma grande preocupação com a
“extrema direita” dos Irmãos de Itália, falando ao mesmo tempo da
“normalização” do PCP. Em que mundo vive este senhor? Até onde se pode
ir para negar a realidade?
Também
é verdade que no passado Meloni foi dura com a União Europeia. Mas
criticar Bruxelas ou ser eurocéptico não é equivalente a ser fascista. A
União Europeia foi formada por países democráticos, pluralistas e com
sociedades abertas. É inteiramente legítimo atacar a União Europeia. Nas
democracias liberais, nada está acima das críticas. Além disso, as
críticas de Meloni à Europa devem ser entendidas no contexto italiano.
Há
problemas muito sérios com a democracia italiana. Nem é preciso recuar à
profunda corrupção da Primeira República, dominada pelos socialistas e
os democrata-cristãos, e ambos pró-europeus. Basta ir a 2008, o último
ano em que a Itália viu o vencedor das eleições chegar a PM. É verdade
que nas democracias representativas, por vezes, os PMs não são os
vencedores das eleições (muito provavelmente, vai acontecer isso na
Suécia). Mas 14 anos sem um vencedor das eleições a PM é um problema
sério. O que sentiriam os portugueses se isso acontecesse em Portugal?
Em
2011, no meio da crise financeira, Berlusconi foi deposto por Berlim e
Paris, e substituído por Mário Monti. Os seja, Merkel e Sarkozy, na
altura, substituíram os eleitores italianos. Desde aí, a Europa
tornou-se menos popular em Itália, o que não surpreende. E muitas
críticas são dirigidas ao domínio da Alemanha e da França e não à União
Europeia, o que é diferente. Após as eleições de 2013, o líder da
coligação de esquerda, Bersani, não conseguiu formar governo (não tinha
maioria absoluta), e foi Lette que chegou a PM, fazendo uma coligação
com Berlusconi (que credibilidade tem agora Lette para chamar “neo
fascista” a uma coligação onde está um seu antigo aliado?). Em 2015, num
golpe dentro dos Democratas, Renzi substituiu Lette como PM, daí o ódio
entre os dois e a impossibilidade de terem feito uma coligação de
centro esquerda contra a direita liderada por Meloni. Nas eleições de
2018, as chamadas eleições dos populismos, o vencedor foi a 5 Estrelas,
com a Liga em segundo lugar. Mas o PM foi um independente, Conte, porque
ninguém confiava no líder da 5 Estrelas, Di Maio, ou no líder da Liga,
Salvini. Em 2021, Conte foi substituído por outro PM não eleito, Draghi.
Nada
tenho contra Draghi, foi um grande Presidente do BCE e espero que seja o
próximo Presidente italiano (e o mais rapidamente possível), mas
valorizo acima de tudo a democracia. Por isso, acho que é muito bom para
a democracia italiana que a vencedora das eleições seja a próxima PM de
Itália.
Também
celebro que pela primeira vez a Itália tenha uma mulher como PM. Como
estariam os nossos comentadores a celebrar se a esquerda italiana
tivesse eleito uma mulher como PM. Mas a esquerda italiana não gosta de
mulheres líderes. Desde 1945, o PS italiano e depois o Partido Democrata
nunca tiveram uma mulher como candidata a PM. E a direita tem sido
igual, com a excepção de Meloni agora.
Mas,
apesar das celebrações iniciais, não estou optimista em relação ao
futuro governo italiano. Julgo que será mais moderado do que muitos
julgam, e Meloni e Draghi poderão mesmo fazer uma aliança que eleve o
ainda PM a Presidente italiano. Mas é a primeira vez que os Irmãos de
Itália vão governar e convém que haja um escrutínio apurado sobre o
governo. Sobretudo, convém prestar atenção a tentações para violar o
estado de direito e a independência da justiça, mas isso aplica-se a
muitos partidos políticos. Também será importante observar se o governo
irá contribuir para uma maior polarização em relação à oposição
democrática. Se é um enorme disparate chamar fascista a Meloni, também
será um grande erro se o futuro governo de Itália diabolizar a oposição.
Mas,
pior ainda, são os aliados de Meloni, Berlusconi e Salvini. Não são de
confiança. Serão os maiores adversários de Meloni e passarão a vida a
conspirar contra ela. Berlusconi é um sexista sem princípios nem
maneiras que nunca aceitará uma mulher como líder. Salvini não perdoa
ter sido ultrapassado por Meloni. O melhor que poderia acontecer a
Meloni seria a substituição de Salvini na presidência da Liga por alguém
disposto a trabalhar de um modo construtivo com os Irmãos de Itália.
Mas desconfio que a democracia italiana continuará na mesma: incapaz de
resolver os problemas mais sérios que o país enfrenta. Isso é que é
grave. Esqueçam o fascismo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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