Sem dúvida ter vivido durante a guerra ajudou, assim como o fato de seu pai, o rei George IV (que Elizabeth venerava), ter se recusado a tirar as duas filhas do país por uma questão de segurança. Theodore Dalrymple para a revista Oeste:
Vivi
toda a minha vida adulta, assim como vivi a maior parte da minha
infância, sob uma única chefe de Estado: a rainha Elizabeth II. Ela não
foi democraticamente eleita nem foi uma tirana. O cidadão britânico
médio tem muito mais medo de sua Câmara Municipal do que de seu monarca:
a Câmara Municipal (eleita, claro) tem poder real de transformar a vida
num inferno. Dos poderes do governo central (eleito democraticamente),
quase não ouso falar, caso alguém de lá leia isto.
A
finada rainha conseguiu um feito impressionante: ela se manteve popular
por 70 anos. Claro, ajudou muito o fato de que ela não tinha poder de
decisão político, portanto, não foi responsável pelas dificuldades nem
pelos desastres que se abateram sobre o país durante seu reinado. Mesmo
assim, não seria exatamente surpreendente, dado o respeito com que era
tratada, se a rainha tivesse sido uma figura egocêntrica, mimada,
petulante e desagradável, e não a pessoa modesta, com um sentimento de
dever inabalável, que foi (e me apresso em acrescentar, com um senso de
humor excelente). Esse foi um incrível sinal de caráter. Ela cumpriu uma
obrigação oficial dois dias antes de sua morte, aos 96 anos, e sempre
entendeu que não era importante como pessoa, e sim na função que foi
conclamada a desempenhar.
Esta
não é uma maneira muito moderna de ser no mundo. Ela foi maior que seus
súditos, mas também menor: durante 70 anos, a rainha Elizabeth II nunca
esteve livre de suas obrigações, nem por um minuto. Ela sabia que era
alguém comum e, assim, conteve a tendência moderna (da qual não estou
totalmente isento) da autoimportância. A maioria de nós não teria tanto
autocontrole quanto ela teve por 70 minutos, quanto mais por 70 anos.
Seu
funeral, que ocorreu no dia que escrevo este texto, foi muito diferente
do da princesa Diana. O funeral de Diana foi dramático, emocionalmente
kitsch e tão honesto e sincero quanto a estratégia de vendas de um
comerciante de tapetes. Mas o da rainha foi um evento solene. Quando o
arcebispo da Cantuária (um homem por quem não tenho muita admiração)
afirmou que nenhum juramento foi tão bem cumprido quanto o feito por
ela, aos 21 anos, há 75 anos, de dedicar a vida a servir, ele estava
totalmente correto. Claro, suas condições de trabalho eram bastante
boas, mas a boa sorte é um teste de caráter tanto quanto o azar.
Sem
dúvida ter vivido durante a guerra ajudou, assim como o fato de seu
pai, o rei George IV (que Elizabeth venerava), ter se recusado a tirar
as duas filhas do país por uma questão de segurança. Ele e a esposa
ficaram em Londres e se negaram a se mudar do palácio, apesar de terem
sofrido mais de um bombardeio. A rainha, que na época era obviamente uma
princesa, insistiu em servir nas Forças Armadas assim que pôde e fez
treinamento de mecânica. Ela teve um exemplo muito bom no pai, claro,
mas quantos de nós seguem os bons exemplos que nos dão?
(Incidentalmente, um mau exemplo é um bom exemplo quando observado da
maneira correta.)
A feiura e a banalidade
Bem,
chega de falar da rainha: quilômetros quadrados de artigos foram
escritos sobre ela, e não vou acrescentar nada original. Como não tenho
um aparelho de TV (abri mão da televisão mais de 50 anos atrás), fui até
a casa do vizinho para assistir ao funeral no seu televisor do tamanho
de uma tela de cinema, e uma coisa me impressionou, à minha revelia: a
beleza do centro de Londres, a nobreza de seus parques e edifícios, até
que os prédios modernos ao fundo se tornassem visíveis no enquadramento
da câmera, quando a pura incompetência, a feiura e a banalidade da
arquitetura modernista e pós-modernista na Inglaterra não puderam mais
ser ignoradas.
Também
não é mais possível ignorá-las em outros lugares. Sempre que ando pela
Rue de Rennes, em Paris, por exemplo, e vejo a Torre Montparnasse,
penso: “Onde está a Al-Qaeda quando ela pode fazer algo de bom?”
(imagino que, nesses dias de literalidade, seja necessário acrescentar
que eu não desejo de fato que a Al-Qaeda jogue um avião contra ela, por
mais que eu a abomine.)
Fila para visitar o caixão da rainha Elizabeth II, em Westminster Hall, Londres (14 de setembro 2022)
Se
você perguntar a um arquiteto por que é preciso fazer construções que
não são compatíveis com toda a arquitetura anterior da história, e por
que todos os estilos arquitetônicos anteriores, apesar de muito
diferentes entre si, encontraram uma forma de ser coerentes com tudo o
que veio antes, ele vai responder: “Por razões técnicas, não podemos
continuar construindo como fazíamos antes”. E, quando você comenta que é
perfeitamente possível fazer isso, pelo menos na aparência externa dos
edifícios (não que ninguém esteja exigindo repetições exatas), ele vai
mudar de argumento e dizer que, de todo modo, os prédios novos na
verdade são melhores que os antigos e representam o progresso. Como se
houvesse algum progresso de Veneza para, digamos, Novosibirsk.
A indiferença à beleza
O
pai de um amigo meu, um imigrante da União Soviética nos tempos de
Leonid Brejnev, vinha a Londres quando isso era politicamente possível e
se interessava apenas pelos horríveis prédios modernistas que causaram
muito mais dano ao tecido da cidade do que Luftwaffe o fez durante a
guerra. Ele era engenheiro de profissão e continuava sendo um verdadeiro
homem soviético. Olhava para as placas de vidro e concreto por um
momento e dizia: “É uma solução interessante para o problema”. As
belezas da cidade não tinham apelo para ele.
Hoje
em dia, acreditamos que existem pessoas que nascem sem a capacidade de
estabelecer um contato normal com as outras e que, por carecerem de
empatia, parecem estranhamente distanciadas da existência social;
existem também os psicopatas que carecem da capacidade de se solidarizar
com os demais e são indiferentes ao sofrimento que causam, ou obtêm
prazer nele. Parece que existe mais uma categoria: a das pessoas
indiferentes à beleza, que são incapazes de reconhecê-la (e, portanto,
seu oposto), assim como pessoas sem ouvido musical não conseguem
reconhecer a genialidade de Mozart.
O
pai do meu amigo era uma dessas pessoas: elas floresceram durante o
regime soviético, com os marxistas desconfiados de que a demanda por
beleza era apenas uma cortina de fumaça para a contrarrevolução. Mas o
capitalismo e a social-democracia têm, por razões diferentes, muitas
figuras parecidas e que obtiveram muito poder e influência: se você
duvida, venha a Londres.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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