O Irã é o exemplo da escolha entre dois males, escolhido que foi o maior deles. Como é do ativismo marxista ocidental levado a cabo em campo e nos media, idiota útil ao serviço do que desconhece. Eugénia de Vasconcellos para o Observador:
Às
vezes, tantas vezes, muitas mais do que aquelas que desejaríamos, a
escolha possível é entre dois males. Recomenda o bom senso a escolha do
menor dos males na expectativa de progredir a partir dele até ao
aceitável e, posteriormente, ao bom. Lenta, progressiva e seguramente.
Acredito
que esta escolha conservadora e sustentada pela moderação, uma virtude
perdida, pareça inaceitável a qualquer radical de sofá dos dias de hoje e
cujas causas se medem em ressentimento histórico, fragmentação social,
likes e partilhas. No entanto, o tempo como a história têm demonstrado à
saciedade as consequências das utopias de papel uma vez realizadas. Da
União Soviética à Alemanha Nazi.
E
no Irão repressivo, aterrorizador, por onde, há 43 anos, os mulás se
passeiam impunemente enquanto submetem, insultam e humilham as mulheres e
aprisionam o país e o povo nas trevas. O Irão é o exemplo da escolha
entre dois males, escolhido que foi o maior deles. Como é igualmente o
exemplo do activismo marxista ocidental levado a cabo em campo e nos
media, idiota útil ao serviço do que desconhece. Activismo radical que
terá satisfeito, à data, no fim dos anos 70, a União Soviética, os seus
agentes, os seus aliados: os clérigos islâmicos radicais e os
tradicionalistas.
As
circunstâncias têm raízes fundas, não podem compadecer-se de estados de
alma, da volatilidade das emoções, da desinformação ou qualquer outra
forma de manipulação, seja através dos media ou das redes sociais.
Os radicais de sofá de hoje, de Chomsky a R. Waters e discípulos,
que repudiam a resposta ucraniana e dos países ocidentais e da NATO à
Rússia de Putin, sem a menor empatia pelo sofrimento de um povo,
enquanto se condoem, e bem, diante da violência escabrosa que matou
Masha Amini e, de acordo com informações da IRH, mais de 57 pessoas nos
últimos onze dias, são os mesmos, se não em carne pelo menos em
espírito, que colaboraram na entrega do Irão a estes extremistas
religiosos que o destruíram. Onde está a capacidade para assumir
responsabilidades, aprender com os erros? Onde?
Sabemos
todos que cometemos erros de avaliação e que estes nos levam a más
decisões e às suas consequências. A redenção está na aprendizagem: mais
conhecimento, melhores decisões. Nem por isso assim acontece como,
infelizmente, vemos nas tomadas de posição ditas pacifistas no que à
Ucrânia diz respeito.
O
governo do Xá era corrupto? Sim. Era uma autocracia? Sim. Reza Pahlavi
estava numa deriva repressiva? Sim. As assimetrias económicas eram
profundas? Sim. A inflação, como o crescimento económico, dispararam?
Sim. Fazia parte da arquitectura de segurança ocidental a manutenção do
Irão como cliente dos Estados Unidos? Sim. O Irão era o garante de
petróleo face ao embargo da OPEC em 73-74? Sim. Era um bastião
pró-ocidental no equilíbrio precário do Médio Oriente? Sim. Tudo isto é
verdade.
Como
é igualmente verdade que, na senda de Ataturk, se caminhava para a
modernização e industrialização do país; se vivia a expansão dos
direitos das mulheres, inclusive eleitorais e parlamentares; a abertura
do acesso à saúde e à educação; e a necessária sujeição da igreja ao
Estado – por isso a utilização obrigatória do véu foi banida, por isso é
importante que o véu, sinal de submissão, arda, e é um acto de
comovedora e extraordinária coragem: o corpo da mulher sempre foi um
lugar político e religioso, do oriente ao ocidente. Das mulheres veladas
às mães da pátria. Dos ventres sagrados aos direitos reprodutivos.
No dia 8 de Março de 1979, em Teerão, as mulheres saíram à rua para protestar contra o uso obrigatório do véu,
um presente da República Islâmica do Irão e do seu supremo líder,
Khomeini, cujas palavras foram: «uma mulher não usar véu, é
apresentar-se nua». E saíram para protestar o que o véu representava: a
retirada das mulheres dos locais de trabalho diferenciados, das
universidades, das ruas; o retorno à permissão de voltar a casar as
mulheres a partir dos 9 anos de idade, entre outras vilezas, qual delas a
pior. Saíram para protestar o apagamento das mulheres da vida pública, o
seu silenciamento. Durante os seis dias de protestos, estiveram na rua cerca de 100.000 mulheres,
muitas foram espancadas, apedrejadas e esfaqueadas até com vidros
partidos. Aconselho as belíssimas fotografias tiradas por Hengameh
Golestan, nas ruas de Teerão. Mulheres confiantes da sua voz, de cabelos
soltos, de saias curtas, óculos escuros, enfermeiras e professoras de
batas… podiam ser as fotografias das nossas mães.
O
impensável também acontece: um país rico em petróleo, com uma posição
estratégica privilegiada, entre a União Soviética e o Golfo Pérsico,
entre a Europa e o Médio Oriente, em processo de modernização, pode
transformar-se numa teocracia e retroceder séculos num só ano. O que não
se previu nem se pôde acautelar, é o cisne negro. A teocracia iraniana
saída da revolução contra o Xá, por exemplo.
Mas o assassinato de Masha Amini também revelou um cisne negro.
Putin
que, para os marxistas/wokistas do costume se viu obrigado pela NATO e
pelos Estados Unidos, com a conivência da União Europeia, a invadir a
Ucrânia, também revelou um cisne negro: Zelensky e o povo ucraniano.
Encurralado que está agora, Putin espreita o nosso inverno: que a crise
económica e energética, com a inflação a crescer e a recessão à espera,
nos desuna a partir das nossas dificuldades e o favoreça. Se isso
falhar, a anexação justificará o ataque nuclear, a menos que a China o
impeça.
Ou um cisne negro.
PS:
Aconselho o visionamento do vídeo com as filmagens feitas a 8 de Março,
em Teerão, no link acima. É um documento único onde é dada voz às
protagonistas dos protestos: as mulheres na rua. Aconselho também o
livro de Nassim Nicholas Taleb, The Black Swan: The Impact of the Highly
Improbable, sobre os acontecimentos altamente improváveis e o seu
fortíssimo impacto, que o autor denomina «cisnes negros».
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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