Os mesmos direitistas que veem Sound of Freedom só porque "irrita a esquerda" ficam eufóricos com Milei porque "irrita a esquerda". Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Semana passada eu comentei
que o anarcocapitalismo cresce, e informei que o seu ideólogo fundador
defendia a liberdade de os pais venderem os filhos. Esta semana o
noticiário foi gentil comigo: Javier Milei inesperadamente chegou à
disputa presidencial argentina, deixando a esquerda e o bolsonarismo em
polvorosa. De um lado, a grande mídia faz crer que Milei é mau como um
pica-pau por ser de "extrema-direita"; de outro, os bolsonaristas têm
certeza de que Milei é um herói por avançar contra a vontade da grande
mídia. Mas eu digo que o noticiário foi gentil comigo porque agora eu
posso dizer — ARRÁ! — que Milei é um anarcocapitalista
e uma de suas opiniões "polêmicas" é que os pais, num mundo ideal,
deveriam ter o direito de vender os seus filhos. Quem quiser conferir a
declaração de 2022 pode clicar aqui.
Conforme explicou, não é que ele vá se eleger presidente da Argentina e
implementar o anarcocapitalismo — que exclui a própria instituição da
presidência da Argentina. Em vez disso, ele pensa que "em duzentos
anos", após mudanças sociais, dever-se-ia começar a discutir a liberdade
de os pais venderem crianças. E ele mesmo, se tivesse um filho, não
venderia. Vender ou não vender um filho deve ser coisa de foro íntimo,
não parte de um código moral reforçado por lei.
A
situação de Milei é análoga à dos políticos comunistas que disputam
cargos eleitorais: em tese, tais cargos não deveriam existir; mas, dado
que não vivemos em suas utopias, eles disputam os cargos mesmo assim, na
esperança de promover mudanças socioculturais.
A pauta de costumes é outra coisa que une Milei à esquerda. Em matéria de 2018
sobre a sua vida privada, Milei resumiu sua vida política assim: "Você
pode ir para a cama com quem você quiser." Basicamente, o ideário da
Nova Esquerda surgida em 68, para a qual "é proibido proibir" sexo e
drogas.
Juntemos
lé com cré. No mundo ideal do anarcocapitalismo, os pais teriam o
direito de vender os filhos e os homens teriam o direito de ir para a
cama com quem quisessem. Um economista (Milei é economista) sabe que a
criação de mercado põe em marcha os mecanismos de oferta e procura. Se
muita gente estiver disposta a pagar caro por criança, isso será um
incentivo para produzir criança direto para a venda. Em entrevista a Jordan Peterson,
Tim Ballard disse que criança é mais lucrativa que cocaína, porque dá
para vender várias vezes. Tim Ballard foi agente especial de Segurança
Doméstica dos EUA e é personagem do filme Sound of Freedom. Nesse filme
que tanto atiçou a autodeclarada direita,
revelam-se exatamente as consequências da mercantilização de seres
humanos. Na entrevista a Jordan Peterson, Tim Ballard afirmou que
existem na África fazendas de seres humanos, nas quais mulheres são
sistematicamente estupradas para fabricar bebês destinados à exploração
sexual e venda de órgãos. Diga-se de passagem, anarcocapitalistas também
defendem a "liberdade" para vender órgãos, e Milei já se declarou favorável à criação desse mercado.
Ou
seja: os mesmos direitistas que veem Sound of Freedom só porque "irrita
a esquerda" ficam eufóricos com Milei porque "irrita a esquerda". São
uns descerebrados destituídos de autonomia moral.
A
maioria nem olha esses detalhes, mas vale registrar que, segundo os
anarcocapitalistas, o cenário descrito por Tim Ballard não está conforme
aos seus preceitos porque viola o lendário "PNA", isto é, o princípio
de não-agressão. Primeiro cria-se uma sociedade armada para o abuso
infantil e para a escravidão. Depois torce-se para que o PNA seja
respeitado até pelos maiores poderes econômicos, armados de exércitos
mercenários. Como garantir a validade do princípio? Aí eles não dizem,
porque são irresponsáveis e levianos.
O
que os macacos amestrados da torcida política não percebem é que
"esquerda" e "direita" são termos que encobrem a unidade de uma
ideologia que é vendida sob ambos os rótulos. Vejam a esquerda de 68, a
Nova Esquerda. Ela foi uma ruptura com todas as esquerdas
pré-existentes. Fosse marxista ou cristão, o esquerdismo estava sempre
associado à reorganização do trabalho e da vida econômica. Com a Nova
Esquerda, o assunto passou a ser sexo. E a pós-liberal Louise Perry
mostra até que ponto os neoesquerdistas estavam dispostos a ir: "amiúde
nos esquecemos de como eram diferentes as atitudes quanto ao abuso
sexual infantil nos anos 70 e 80. Na Grã-Bretanha, os membros da
Paedophile Information Exchange [Troca de Informação de Pedófilos]
estavam em campanha aberta pela abolição da idade de consentimento e
eram muito bem recebidos em alguns círculos do establishment, com o governo de Margaret Thatcher recusando os pedidos de banimento do grupo.
Nos EUA, a NAMBLA (Associação Norte-Americana do Amor entre Homens e
Meninos, em inglês) foi fundada no final dos anos 70 e atraiu o apoio de
figuras como Allen Ginsberg e a feminista Camille Paglia. [...] Na
Suécia [...], veio à tona em 2009 o fato de que a Biblioteca Real de
Estocolmo tinha uma coleção de pornografia infantil adquirida
(legalmente) entre 1971 e 1980 e que ainda era emprestada (ilegalmente)
ao público no século XXI — uma desconfortável lembrança do passado
hiper-liberal da Suécia. Em 1977, uma petição ao parlamento francês que
solicitava a descriminalização do sexo entre adultos e crianças foi
assinada por uma longa lista de intelectuais, incluindo Sartre, Derrida,
Althusser, Beauvoir, Deleuze, Guattari e [...] Foucault." (The Case against Sexual Revolution, p. 56-57)
Essa
petição de intelectuais franceses costuma ser lembrada pela direita
para mostrar como a esquerda é má. No entanto, não só não há precedentes
disso nas esquerdas pré-68, como direitistas liberais estavam se
chafurdando na mesma lama na mesma época. Garante-se hoje que ser de
direita é ser como esses caras aí que apoiam a liberdade de associação e
expressão de pedófilos.
É
preciso prestar atenção ao seguinte: assim como no final da década de
60 a esquerda tradicional começou a ser substituída por uma ideologia
estranha, obcecada por sexo, drogas e dinheiro, a direita tradicional
começou a largar a bandeira de "Deus, pátria e família" para ser
substituída pela mesmíssima ideologia obcecada por sexo, drogas e
dinheiro. A diferença é só de ênfase. No que depender da propaganda, o
eleitor irá escolher entre o "esquerdista" que diz que suruba com
maconha é bom, e o "direitista" que diz que ele mesmo não faz suruba e
não usa maconha, mas é inalienável o direito de defender e praticar tais
coisas. Haja liberdade política!
Escolher
entre Nova Esquerda e Nova Direita é escolher entre seis e meia dúzia.
Não obstante, basta um infame qualquer se declarar "contra a esquerda"
para granjear o apoio de figuras como Eduardo Bolsonaro, olavetes e não
poucos liberais. Se Hitler vivesse hoje, uma porção de orangotango iria
festejar a sua vitória na Alemanha só porque era um anticomunista. Até
nos dias de hoje esses mesmos orangotangos são incapazes de dizer que
Hitler era ruim sem dar tratos à bola para dizer que ele era "de
esquerda". A depender da definição que se dê, Hitler era de esquerda,
mas fato é que ele era a opção dos anticomunistas (conservadores
inclusos) e era rechaçado pelos social-democratas. Usualmente diz-se que
os conservadores são de direita e os social-democratas são de esquerda.
Será possível admitir, então, que não necessariamente um campeão contra
"a esquerda" não é necessariamente boa coisa?
Então,
por gentileza, ponhamos a mão na consciência e evitemos agir como um
bando de macacos diante de banana ao nos depararmos com o rótulo de
"direita". Se um político defender que no melhor dos mundos os pais
poderiam vender os filhos, esse político é horrível, e não interessa se a
Folha, a Globo ou o PT acham-no bom ou ruim. Querer o contrário dos
comentaristas da GloboNews é guiar-se pelos comentaristas da GloboNews.
Quem tem autonomia moral não precisa ouvir William Bonner para saber se
algo é bom ou ruim. Se Miriam Leitão disser que é errado vender
crianças, o homem livre e com caráter sólido não se sentirá compelido a
dizer que vender criança é bom.
****
Post scriptum: Muito fofo o texto de Polzonoff
contra "intelequituais" que desprezam o fanatismo dos bolsonaristas.
Noto apenas que, se ele escolheu admirar o amor que os homens comuns
sentem pelo Mito, poderá encontrar lazer diante de uma senhorinha
apaixonada a tal ponto por Lula, que diz que, quando ele fala, o mundo
se ilumina.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
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