De movimentos pacifistas de fachada até disputas em alto mar, o projeto hegemônico expande-se e atrai simpatizantes interessantes. Vilma Gryzinski:
Alguém acha que pegar carona numa viagem oficial à China é só para aproveitar as boas coisas da vida?
Ah,
que delícia ser ingênuo. Esse estado de pureza só dura enquanto é
ignorada a ampla rede de contatos que a China estabeleceu com
personalidades e organizações políticas, obviamente de esquerda,
simpáticas a seu projeto ou apenas antipáticas aos Estados Unidos.
Os
contatos são extensos. Veja-se, por exemplo, o grupo No Cold War, um
nome que tem um toque pacifista — estratégia seguida durante muito tempo
pela antiga União Soviética e abraçada por esquerdistas variados,
capazes de defender o desarmamento unilateral. Ou seja, Estados Unidos e
aliados fechavam suas matrizes bélicas, mas os países comunistas
continuavam com seus arsenais imexíveis. Pacifismo unilateral.
Uma
reportagem do New York Times mostrou a habilidade com que o grupo No
Cold War “na superfície é um coletivo dirigido por americanos e
britânicos para os quais a retórica americana contra a China desvia
atenções de assuntos como mudança climática e injustiça racial”.
Cavando
só um pouquinho, descobre-se que é um lobby influente e bem financiado
para defender os interesses chineses. No comando, Neville Roy Siingham,
milionário do mundo high tech, descendente de imigrantes do Sri Lanka
por parte do pai, que era um militante maoísta. Menos cheio de dedos, o
Time of India diz que o milionário ativista é um defensor do Partido
Comunista Chinês e “doou milhões de dólares para grupos que promovem a
propaganda da mídia estatal chinesa”.
Apenas
alguns centímetros abaixo, verificamos que o No Cold War conseguiu o
apoio de personalidades importantes para uma carta aberta em que diz que
“uma nova guerra fria vai contra os interesses da humanidade” e convoca
os Estados Unidos a “recuar dessa ameaça”.
Entre os signatários mais conhecidos no Brasil: Celso Amorim e João Pedro Stédile.
O
MST também tem um interesse especial em investimentos chineses e
publicou no fim do ano passado, no original em inglês, um interessante
artigo sobre o tema, concentrando-se no setor elétrico, em especial com o
controle da CPFL, a companhia energética de São Paulo.
“Para
o Brasil, não foram bons negócios e demonstram a irresponsabilidade dos
governos neoliberais do PSDB que privatizaram ativos públicos
estratégicos. A China — que jamais venderia uma empresa estatal de
energia a estrangeiros — cuidou de seus interesses e tirou vantagem de
uma oportunidade oferecida pelo mercado”, diz o artigo.
A
sua origem também nos conta alguma coisa. É um centro de estudos
chamado Tricontinental: Instituto para a Pesquisa Social, “um instituto
internacional guiado por organizações e movimentos populares”. Informa o
próprio: “Temos institutos na Argentina, no Brasil, na Índia e na
África do Sul”. No capítulo intitulado “Monstros”, os integrantes do
instituto “desenvolvem a teoria de que a perversidade do capitalismo
contemporâneo foi produzida tanto pelos conservadores de direita
defensores do livre mercado quanto por liberais e pela
social-democracia”.
O
instituto tem base em Xangai, a mesma ofuscante cidade chinesa onde
está instalado Roy Singham. Lá, “um braço de sua rede está co-produzindo
um show no YouTube financiado em parte pelo departamento de propaganda
da cidade”, segundo o Times.
“Dois
outros estão trabalhando com uma universidade chinesa para difundir ‘a
voz da China ao mundo’. E, no mês passado, o senhor Singham participou
de um seminário do Partido Comunista sobre como promover o partido
internacionalmente”.
O
projeto chinês de emular os think tanks existentes nos Estados Unidos e
na Inglaterra tem um alcance de tirar o fôlego. Centros de estudos e
nomes do mundo acadêmico britânico são especialmente sensíveis ao melhor
argumento que existe nesse ramo, polpudas doações e o número crescente
de estudantes chineses que pagam as caríssimas anuidades das melhores
universidades.
Durante
algum tempo, o notável crescimento chinês criou a expectativa de que a
abertura econômica e o envio de grande número de jovens para estudar no
exterior propulsionariam uma correspondente abertura política e social
que amalgamasse as tradições do país e seu histórico político com
princípios democráticos. Uma China virtuosa e desenvolvida iluminaria o
Oriente.
Estamos
vendo o exato oposto. Estudantes que seriam a ponte nesse processo
regressam à China com conhecimentos sugados em laboratórios e centros de
pesquisa do Ocidente e aumentam a capacidade técnico-científica da
potência que aspira à hegemonia.
Em
vez da imagem criada pela propaganda de um parceiro harmonioso e
benevolente, a China tem uma política de agressividade em relação a
vizinhos que não cedem facilmente ao projeto expansionista no Mar do Sul
da China, o mais importante espaço marítimo para o comércio mundial. A
última novidade foi o uso de canhões d’água por um barco da guarda
costeira chinesa para afastar uma embarcação militar das Filipinas. Os
dois países disputam as estratégicas Ilhas Spratly. É nessa região que a
China constrói ilhas artificiais para intimidar vizinhos.
De
atóis artificiais a uma base secreta em Cuba, passando por instrumentos
de soft power como um falso movimento pacifista criado para promover os
interesses chineses, o dragão vermelho solta fogo em todas as frentes.
E faz amigos em posições importantes.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
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