BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nos últimos anos, um fenômeno novo surgiu no Brasil. A crítica mais contundente contra a Justiça tem vindo da direita. Nicolau da Rocha Cavalcanti para o Estadão:
Tradicionalmente,
o Judiciário sempre foi alvo da crítica – e da ira – da esquerda.
Avesso às demandas sociais e pouco representativo da diversidade da
população, era visto como elemento do sistema de controle social e de
manutenção do status quo. O campo progressista sempre acusou as decisões
judiciais de refletirem uma compreensão específica de sociedade, a
reforçar, entre outros danos, a desigualdade, o racismo e a misoginia.
Nos
últimos anos, um fenômeno novo surgiu no Brasil. A crítica mais
contundente contra a Justiça tem vindo da direita. Há uma campanha para
mudar a percepção da população sobre a Justiça. Escândalos pontuais
envolvendo juízes – às vezes, meras acusações sem fundamento – são
ampliados, de forma a afetar a credibilidade de todo o sistema de
Justiça.
O
foco da campanha não é apenas a retidão dos juízes. Busca-se alterar a
recepção das decisões judiciais pela população – o que representa
abandonar um dos grandes cânones conservadores liberais, o do respeito
às instituições. Diante do que se viu nos últimos dois anos, pode-se
dizer que a direita brasileira almeja implodir a presunção de
legitimidade e de legalidade das decisões judiciais. Quer que o cidadão
comum questione, de forma habitual e espontânea, a lisura da
magistratura e a correção de suas decisões. Trata-se de mudança
significativa de postura, cujos efeitos já são vistos em muitos setores
da sociedade, mas estão longe de serem conhecidos em toda a sua
extensão.
A
direita não esconde o objetivo da estratégia. Sua cruzada é para
controlar o Judiciário. Insatisfeita com o equilíbrio atual do sistema
de freios e contrapesos instaurado pela Constituição de 1988, ela quer
mais domínio sobre as decisões judiciais.
A
bandeira contra o Judiciário – em concreto, contra o Supremo Tribunal
Federal (STF) – foi muito usada nas eleições passadas; especialmente, na
disputa de vagas para o Senado. A direita prometeu ampliar o controle
do Legislativo e do Executivo sobre o Judiciário. Ou seja, deseja que a
política tenha maior domínio sobre a justiça, sobre o direito. Há aqui
outra mudança histórica. O campo conservador-liberal sempre sustentou a
existência de uma diferença essencial entre direito e política. Em sua
visão, o direito não seria simples fruto do poder. Agora, pelo que se
vê, a direita – ou, ao menos, parte significativa dela – busca destituir
o direito de sua específica dimensão, deixando-o inteiramente submisso à
política.
Talvez
alguém possa questionar: a direita não quer ir tão longe assim, ela só
está defendendo suas causas – que não têm recebido no STF o mesmo
acolhimento que antes recebiam – e os direitos de seus aliados – que têm
sido alvo de ações do sistema de justiça penal como nunca havia
ocorrido. O Judiciário parece ter virado à esquerda, dizem, e é preciso
conter essa tendência.
Diante
desses argumentos, a provocação brota fácil. Mas como é suscetível a
direita! Apanharam tão pouco e já querem mudar o sistema. Não parecem
conservadores. A esquerda, que apanha há tanto tempo da Justiça, sempre
foi mais comedida no intento de controlar e submeter o Judiciário a suas
vontades. Lula questionou e desautorizou a ordem de prisão expedida
contra ele, mas a obedeceu. No 7 de Setembro de 2021, na Avenida
Paulista, sob aplausos de apoiadores, Jair Bolsonaro assegurou que não
respeitaria eventual ordem de prisão contra ele. A disparidade de
atitudes é evidente.
À
parte das provocações, o fato é que a campanha da direita contra o
Judiciário vai muito além da defesa de suas causas e dos direitos de
seus membros. Querem nada mais nada menos que alterar o equilíbrio entre
os Poderes e mudar a percepção da população sobre o Judiciário, o que
tem efeitos de curto, médio e longo prazos. Não é possível alegar
desconhecimento. Por exemplo, uma campanha eleitoral que fomenta o
desprezo pela Justiça nunca é simples pedido de votos. Suas
consequências vão muito além das urnas.
Eis
o que se constata. Mesmo numa sociedade anestesiada, que tolera
situações intoleráveis, o sentimento de injustiça continua sendo capaz
de engajar as pessoas. Habitualmente utilizado pela esquerda, é agora
também manejado pela direita em suas causas. O problema é que esse uso
político, eficiente em gerar resultados imediatos, traz sérios riscos
para a sociedade e para as instituições, especialmente quando está
atrelado à desinformação. Ainda que cite a liberdade, a manipulação
afetiva coletiva nunca é autonomia. Sempre é jugo.
Para
aprimorar o Judiciário – tarefa de sempre –, em vez de dominá-lo
politicamente, é preciso prover as condições para um sistema de justiça
técnico, independente e plural, com autoridade para atuar
contramajoritariamente e com regras equilibradas que preservem as
garantias fundamentais, como a presunção de inocência e a imparcialidade
do juiz. Infelizmente, tanto a direita quanto a esquerda parecem
trilhar muitas vezes o caminho contrário. O resultado é um só: os dois
lados sentem-se profundamente maltratados pela Justiça. Vale a pena
insistir nesta via?
Postado há 4 days ago por Orlando Tambosi
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