BLOG ORLANDO TAMBOSI
Huntington defendeu que um novo paradigma se aproximava, com o declínio do Ocidente, conduzindo ao retorno das identidades nacionais: no mundo pós-guerra fria, as diferenças mais importantes são culturais. Patrícia Fernandes para o Observador:
O
ano de 2022 fica inevitavelmente marcado pela invasão russa da Ucrânia,
o que deu origem a uma explosão de publicações em torno da história dos
dois países e dos seus líderes. Mas um livro mais antigo que vale a
pena recordar é O choque das civilizações e a mudança na ordem mundial,
de Samuel Huntington. Publicado em 1996, esta obra apresentou-se em
contraciclo com o espírito otimista que afirmava a vitória das
democracias liberais. Em sentido contrário, Huntington defendeu que um
novo paradigma se aproximava, com o declínio do poder do Ocidente,
conduzindo a um retorno das identidades nacionais: “no mundo pós-guerra
fria as diferenças mais importantes entre os povos não são ideológicas,
políticas ou económicas. São culturais.” O atual conflito, e aquelas
histórias e biografias, devem então ser interpretadas a partir de uma
visão mais ampla da teoria política, que permite analisar esta mudança
paradigmática.
O
argumento de Huntington foi lido, na altura, como uma reação à tese de
Francis Fukuyama sobre o fim da história, mas o pensamento dos dois
autores acabou por convergir. O abandono do credo na vitória liberal
levou Fukuyama a debruçar-se sobre o crescimento dos movimentos
identitários, à esquerda e à direita, em Identidades, livro de 2018; e, em 2022, analisou o modo como o Liberalismo tem vindo a falhar no cumprimento do seu projeto em Liberalismo e seus descontentes.
Esse descontentamento tem alimentado as franjas mais radicais da
esquerda e da direita, resultando num movimento comum de autoritarismo
que põe em causa um dos pilares fundamentais das sociedades liberais: a
liberdade de expressão.
Esse
ataque à liberdade de expressão tem vindo a ser identificado com a
expressão mais ampla de “cultura de cancelamento” (cancel culture) e é
particularmente visível no mundo académico anglo-americano, impulsionado
pelo Social Justice movement. Para compreendermos o seu sentido
teórico-filosófico, temos de nos debruçar sobre a Teoria Crítica da
Raça, nascida nas faculdades de Direito norte-americanas.
Para quem pretende um primeiro contacto com esta teoria, a sugestão será começar por Teoria Crítica da Raça: uma introdução,
de Richard Delgado e Jean Stefancic, que expõe, de forma sucinta e
clara, os seus principais elementos. Fica um aviso à navegação: esta
teoria não assenta exclusivamente em argumentos loucos e descabidos.
Pelo contrário, é muitas vezes possível compreender o que levou os
autores a formular estas ideias. O problema é que a sua aceitação
unidimensional e acrítica nos faz cair numa posição tão radical como a
defendida por Robin DiAngelo, em Fragilidade Branca, que descrevi aqui: e para este livro já é necessário algum estômago, em especial porque nos faz mergulhar no mundo da epistemologia do eu.
A
epistemologia do eu caracteriza-se por fundar o conhecimento da
realidade exclusivamente na experiência pessoal e partir do princípio de
que essa experiência é necessariamente verdadeira. Encontramos este
elemento em DiAngelo, mas também em Reni Eddo-Lodge, com Porque Deixei de Falar com Brancos sobre Raça, e Ta-Nehisi Coates, com Entre mim e o mundo,
vencedor do National Book Award de 2015. Mas importa recordar que é
possível escrever sobre estes assuntos sem adotar a perspetiva do eu e
um permanente tom de vitimização: em 1981, bell hooks publicou Não serei eu mulher?, um livro que se tornaria um clássico no domínio do feminismo negro e que vale a pena ler.
Os
problemas deste modo identitário de pensar a política e a sociedade,
bem como as consequências para as sociedades liberais, têm vindo a ser
progressivamente identificados. A partir de uma perspetiva filosófica,
Helen Pluckrose e James Lindsay apresentam, em Teorias Cínicas
(2021), uma abordagem muito detalhada às teorias que dão forma às
diferentes áreas do ativismo académico crítico. E em 2022, temos A Guerra ao Ocidente,
de Douglas Murray, que, numa perspetiva mais jornalística, procura
denunciar os efeitos da Teoria Crítica da Raça nos nossos dias.
Independentemente
das formas de resistência que vão surgindo, é inegável que vivemos hoje
num paradigma identitário e a literatura revela-o abertamente. Longe
vão os tempos do realismo de inspiração comunista ou do estruturalismo
sem autor. A literatura vive hoje muito da incursão biográfica e das
reflexões sociológicas que se retiram dela. Um bom exemplo é, agora em
contexto francês, o de Édouard Louis, que viu traduzido entre nós, em
2022, o seu primeiro livro: Para acabar de vez com Eddy Bellegueule, depois de História da violência (2019) e Quem matou o meu Pai
(2020). Os três livros giram em torno da sua experiência com as duas
Franças – a rural e a urbana – e o modo como elas condicionam e
enclausuram a identidade pessoal. Tratando-se de um autor tão jovem,
fica a dúvida sobre se Édouard Louis será capaz de escrever
continuamente sobre as mesmas experiências ou acabará por esgotar a sua
capacidade criativa por estar limitado a essa incursão biográfica.
Com
mais de 80 anos, Annie Ernaux já não levanta essa preocupação, apesar
de encontrarmos na vencedora do Nobel da Literatura de 2022 o mesmo
estilo autobiográfico. Com uma particularidade: os livros de Ernaux são
escritos à distância. Esse distanciamento, temporal e intelectualizado,
traduzem-se numa escrita fria, objetiva, depurada de excessos, mas que
não deixa de nos envolver e de um modo quase imagético. Os anos, em particular, é como uma longa-metragem da sociedade francesa que nos obriga ao reconhecimento desse ditador que é o tempo:
“Tudo
se apagará num segundo. O dicionário acumulado desde o berço até ao
leito de morte irá desaparecer. Depois, o silêncio e nenhuma palavra
para o dizer. Da boca aberta nada sairá. Nem eu nem mim. A língua
continuará a pôr o mundo em palavras. Nas conversas à volta de uma mesa
em dia de festa seremos apenas um nome, cada vez mais sem rosto, até
desaparecermos na multidão anónima de uma geração distante.”
Resta a literatura para salvar alguma coisa:
“Portanto,
o livro a fazer era um instrumento de luta. Nunca abandonou esta
ambição, mas agora, acima de tudo, gostaria de captar a luz que inunda
rostos doravante invisíveis, toalhas de mesa cheias de comida
desaparecida, essa luz que já lá estava, dentro das narrativas dos
domingos da infância, e nunca mais deixou de descer sobre as coisas no
momento em que são vividas – uma luz de outrora. Salvar (…). Salvar
qualquer coisa do tempo onde não voltaremos a estar.”
Boas entradas e um bom ano de 2023!
PS:
Uma visão política identitária comporta como consequência inevitável a
limitação da liberdade de expressão. Nos Estados Unidos, isso já é
assumido como um problema académico e começa a ser discutido: no início
do mês de novembro, ao abrigo da Stanford University, foi organizada uma
conferência sobre liberdade académica. O evento esteve envolvido em polémica,
mas reuniu as mais relevantes figuras que discutem habitualmente o
tema, como Jonathan Haidt, Jordan Peterson, Greg Lukianoff, Douglas
Murray e Niall Ferguson (a conferência foi gravada e as comunicações
estão disponíveis aqui).
A lista de participantes é ampla, mas quando se perguntou quantos já
tinham sido cancelados, a maioria ergueu o braço. Como Francisco Bosco
diz, em O diálogo possível, estes acontecimentos não são excessos; são antes exemplos que decorrem daqueles princípios teóricos.
Postado há 9 hours ago por Orlando Tambosi
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