Mais um capítulo do programa desenvolvido pelo professor Rui Ramos para os leitores do Observador. Eis a newsletter:
A monarquia constitucional de 1834-1910: um país de cidadãos iguais (pelo menos formalmente)
As
várias facções liberais governaram Portugal durante 76 anos seguidos
(1834-1910). Foi o regime contemporâneo que até hoje durou mais, quase o
dobro do tempo do Estado Novo (1933-1974). A governação liberal não
mudou Portugal no sentido em que o fizeram a emigração e a
industrialização da década de 1960 – entre 1834 e 1910, Portugal
permaneceu uma sociedade de pequenas aldeias e vilas, com duas ou três
cidades importantes, ligadas entre si por caminhos de ferro a partir das
décadas de 1850-1870. Mais grave do que isso: o novo regime não
inverteu o processo de divergência económica em relação à Europa
ocidental iniciado na segunda metade do século XVIII.
Em
1885, quase metade dos mancebos presentes à inspecção militar foram
dados como “incapazes” por falta de altura, de peso ou de saúde. Mas os
liberais transformaram o ambiente institucional e cultural, o que não
foi pouco nem secundário. De um país onde os portugueses pertenciam a
grupos com diversos estatutos e em que a principal função do poder
soberano era manter esses estatutos, os liberais fizeram outro país em
que os cidadãos eram todos formalmente iguais e estavam sujeitos a um
poder apostado em criar um mundo melhor. De um país onde o cimento
cultural era o catolicismo, os liberais fizeram outro país, unido agora
sobretudo pela memória exaltada de um passado comum.
Durante
anos, foi hábito dizer que os liberais teriam falhado porque a
sociedade portuguesa não dispunha de uma forte classe média e não se
industrializou, como a Inglaterra. É um erro, originado pela velha
crença, conservada pelos marxistas, de que o liberalismo deve ser
simplesmente definido como a dominação de uma classe, a burguesia.
Em
Inglaterra, os liberais não conseguiram um monopólio do governo como em
Portugal, sendo obrigados a rodar no poder com o Partido Conservador.
Na Bélgica, em 1884, os liberais tiveram de ceder o governo ao Partido
Católico, que manteve maiorias absolutas no parlamento até 1918. Noutros
países surgiram movimentos socialistas, ligados aos sindicatos de
trabalhadores, como o SPD (Partido Social Democrata da Alemanha), que em
1912 se tornou o maior partido no Reichstag do Império Alemão.
Em
Portugal, enquanto a monarquia constitucional durou, entre 1834 e 1910,
os partidos liberais dominaram sempre o governo e as duas câmaras do
parlamento. Foi esta hegemonia liberal que fez Antero de Quental, em
1879, notar que Portugal era, na Europa, “o país onde o liberalismo
triunfou mais completamente”.
Ao
contrário do que geralmente se diz, o facto de a sociedade portuguesa
ser pobre, rural e analfabeta foi uma vantagem para os liberais. Os
políticos liberais tinham quase todos cursos superiores e eram oriundos
de grupos sociais poupados ao trabalho manual. Entre uma população de
pobres trabalhadores de enxada, cuja taxa de analfabetismo chegava aos
80%, apareceram assim como os detentores naturais do poder, explorando a
seu favor os hábitos de hierarquia e reverência. Não tinham, para se
lhes opor, nem uma grande aristocracia terratenente, enraizada nas suas
terras, nem uma igreja independente e poderosa. Os padres eram
funcionários do Estado e os fidalgos eram proprietários médios,
importantes apenas nas freguesias onde residiam.
Os
liberais destruíram as formas tradicionais de autogoverno local e
construíram um Estado centralizado em Lisboa, no qual arranjaram emprego
como funcionários: em 1890, 53% dos deputados eram empregados do
Estado. As classes preponderantes na província, dos padres aos
lavradores ricos, foram integradas na ordem política através dos
requisitos eleitorais do sistema representativo e dos negócios e favores
proporcionados pela administração.
O
“progresso” liberal pôde assim ser decretado no Terreiro do Paço, e
levado às aldeias pelos delegados administrativos do poder central, com o
apoio da tropa quando necessário. E a tropa foi precisa, sempre que os
governos e parlamentos liberais se atreveram a incomodar os hábitos
religiosos das populações do norte do país, ou a fazer-lhes pagar os
custos do “progresso” com mais impostos. A revolta minhota da Maria da
Fonte, de 1846, foi a mais memorável, mas não a única, na longa crónica
de resistência e insubmissão rural.
Em
meados do século XIX, os liberais constituíam uma elite burocrática
lisboeta. Viviam entre a Arcada, São Bento e São Carlos, isto é, entre
as arcadas do antigo Terreiro do Paço onde estavam as secretarias de
Estado, as câmaras do parlamento no Palácio de São Bento, e o Teatro da
Ópera de São Carlos, financiado pelo Estado para exibir os melhores
cantores europeus. Eram só homens, persuadidos, como quase toda a gente
na Europa, de que a vida pública não convinha às mulheres (embora a
condição feminina os preocupasse muito). Entretinham-se com debates
parlamentares e polémicas jornalísticas, no meio de grande tolerância e
total liberdade de expressão.
Foi
nesse ambiente que Eça de Queiroz publicou O Crime do Padre Amaro
(1875) e Guerra Junqueiro a Velhice do Padre Eterno (1885) sem os
problemas de censura que certamente teriam tido noutros países europeus.
A tolerância liberal, porém, não traduzia um verdadeiro respeito pelo
pluralismo. Para os liberais, era preciso ser moderno, e só havia uma
maneira de ser moderno, que era a deles. A diversidade de modos de vida
provinha apenas de erros que deviam e podiam ser corrigidos.
Os
liberais recusaram-se a aceitar os portugueses tal como eles eram:
quiseram-nos fazer ser como os ingleses ou os franceses. É verdade que
evitaram as violências que poderiam pôr em causa o regime de legalidade e
de direitos. Os governos liberais, sobretudo na segunda metade do
século XIX, no tempo do grande ministro Fontes Pereira de Melo (chefe do
governo entre 1871 e 1877), cultivaram o compromisso e o consenso. Mas
nunca se contentaram com o simples estabelecimento de uma ordem
jurídica. Os liberais jamais entenderam o papel do Estado como o do
proverbial guarda-nocturno.
A
tese de que os liberais tiveram problemas porque não cuidaram do povo
nem o quiseram integrar na ordem política não é correcta. A verdade é o
contrário. Nos meados do século XIX, propuseram-se construir as
infraestruturas do progresso, das escolas aos caminhos de ferro e aos
telégrafos. Em 1900, a rede de caminho de ferro já chegara mais ou menos
à dimensão que teria no século XX. Portugal foi um dos primeiros países
da Europa onde o Estado declarou a escolarização primária gratuita e
obrigatória, em 1835. Em 1878, os liberais reconheceram o direito de
voto a quase toda a população adulta masculina, ao admitir que, além dos
contribuintes com mais rendimentos e dos cidadãos instruídos, todos os
homens que eram “chefes de família”, mesmo pobres e analfabetos,
deveriam votar. Era praticamente o “sufrágio universal”, tal como
entendido no século XIX.
É
verdade que Portugal não mudou como outros países da Europa no século
XIX, o Reino Unido ou a Bélgica por exemplo, onde a maior parte da
população passou a trabalhar em fábricas e a viver em cidades. Talvez os
liberais não desejassem uma mudança dessas, que muitos, inicialmente,
identificaram com pobreza e conflitos sociais (seria, de facto, a base
da prosperidade desses países). No entanto, desejavam certamente um país
mais “instruído” e mais “patriota”.
Por
tudo isso, atormentaram-se muito quando constataram que o povo,
desconfiado de um Estado professoral e intrometido, não ia às escolas,
faltava às eleições, resistia ao cumprimento dos deveres fiscais e
militares, e insistia em manter-se fiel àquilo que, para os liberais,
eram “superstições” e “fanatismo religioso”. Quando, a partir de 1878,
os recenseamentos da população revelaram uma taxa de analfabetismo de
quase 80% para os maiores de 7 anos, esse valor passou a atormentar
todos os políticos. Tornou-se costume, nos debates parlamentares, alguém
lembrar a suposta indiferença popular. Em 1884, foi Fontes Pereira de
Melo, o mais importante chefe político do regime: “o país real, o das
montanhas e diferentes localidades, é indiferente a tudo o que nós aqui
fazemos”.
Nada
disto diminuiu o ardor liberal por mudar o país. Pelo contrário.
Resolveram ser ainda mais zelosos. No fim do século, muitos liberais já
se consideravam abertamente “socialistas”. Não quer isto dizer que
desejassem impor qualquer sistema colectivista, mas que resistiram cada
vez menos à ideia de recorrer ao poder do Estado para propiciar
transformações sociais e de mentalidades. Na sua ânsia de melhorar a
condição do povo, prepararam-se mesmo para desrespeitar todos os hábitos
e até o direito de propriedade.
Foi
o que fizeram com um dos seus projectos mais ambiciosos, o da
“arborização geral do país”, de 1868. Tratava-se de mudar a paisagem
portuguesa, então bastante desolada e poeirenta, e de cobrir cumeadas,
charnecas e areais com um tapete verde de arvoredo, como nas “nações
mais ilustradas da Europa”, isto é, as do norte do continente. O
implacável regime florestal causou imensos conflitos com as populações
rurais. Mas cem anos depois, no fim do século XX, o projecto de 1868
vencera: 35% do território de Portugal tinha entretanto sido devidamente
revestido de floresta – uma percentagem superior à da Alemanha ou do
Reino Unido e igual à da França.
O
activismo liberal, desde meados do século XIX, agravou o já crónico
endividamento do Estado, com as correspondentes ameaças de inflação e
bancarrota, e reforçou a associação ao poder político de grupos de
interesse, apostados em viver das obras públicas e da protecção estatal.
O país dos funcionários públicos, numerosos e lamurientos, e dos
contratadores de obras públicas, enriquecidos e corruptos, já existia no
século XIX. Tal como o país dos frustrados do progresso, que depois
pôde continuar a rever-se nas cenas de Os Maias, o romance de 1888 em
que Eça de Queiroz, por vezes involuntariamente, satirizou as pretensões
das elites lisboetas e alguns dos seus próprios ideais.
Na
próxima edição continuarei a viagem (que comecei há cinco semanas) por
esse século liberal que ajudou a fundar o Portugal Moderno.
E
já que se fala do novo traçado político do país, pode ouvir o episódio
do podcast da Rádio Observador E o Resto é História em que falámos das coligações mais marcantes da nossa história.
Na última edição do programa, conversei com o João Miguel Tavares sobre o cnetenário da marcha de Mussolini sobre Roma. Ouça aqui o podcast.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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