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O populismo de direita, com todo o seu cortejo de raivazinhas anti-democráticas, e por mais nefasto que seja, me parece menos perigoso do que o amor pela tirania de uma vasta fatia da extrema-esquerda. Texto do professor Paulo Tunhas para o Observador:
A
última coisa que deve surpreender uma pessoa minimamente lida em
história e familiarizada com o entendimento da sociedade partilhado por
muitos dos seus contemporâneos é o desprezo muito comum pela democracia.
Esse desprezo, mais espontâneo ou mais reactivo consoante os casos,
esteve sempre aí aos olhos de toda a gente. No mais das vezes, ele
exprime-se de uma forma difusa e, regra geral, inconsequente. Não
convém, sob esta forma, atribuir-lhe muita importância: de uma certa
maneira, ele é uma patologia da própria democracia, enquanto projecto
sempre inacabado e essencialmente imperfeito. Noutros casos, porém, ele
revela um entendimento consequente, teoricamente elaborado, da sociedade
e desdobra-se num amor, que raras vezes ousa dizer o seu nome, pela
tirania. Aqui, deve-se sem dúvida levá-lo a sério. Porque ele exprime um
programa de sociedade que coloca radicalmente a democracia em causa.
Não há aqui vestígio algum de amor pela liberdade, por mais que a
palavra “liberdade” esteja muitas vezes na boca dessa gente.
Falo
de “democracia” num sentido lato e convenientemente impreciso, como é
sempre fatal nestas coisas, que são por essência insusceptíveis de
definições rigorosas. E seria descabido, neste contexto, comparar as
democracias contemporâneas ao projecto subjacente à Atenas do século V
a.C., tal como simbolizado pela célebre oração fúnebre de Péricles em
Tucídides. A democracia, no entendimento comum, não é exactamente, para
usar uma linguagem bíblica, uma terra prometida, uma “terra de leite e
mel”, mas a verdade é que há uma espécie de aliança com ela que
caracteriza as sociedades mais livres que conhecemos.
No
que respeita àqueles que a desprezam, deixo de lado os adeptos do
desprezo inconsequente. Por uma razão simples: ele vem, em geral, do
abismo de solidão em que vivem mergulhados muitos indivíduos e o
desprezo exibe exactamente essa solidão excruciante. A solidão condu-los
àquilo que normalmente se chama “egoísmo lógico”, uma vontade
desmesurada e irrevisível de ter razão contra todos os outros. Um seu
complemento quase fatal é a adopção, com graus de elaboração variados,
de uma forma ou outra de teorias de conspiração, que lhes permitem o
benefício narcísico de julgarem ver aquilo que ao comum passa
desapercebido. Sociologicamente, é sem dúvida um fenómeno importante.
Politicamente, duvido que o seja grandemente. É o desprezo consequente,
aquele que vem armado de teorias da sociedade e da história, que é
politicamente significativo. À sua maneira, também ele exprime um
egoísmo lógico, mas trata-se de um egoísmo lógico vestido de uma
linguagem que se pretende sofisticada e feita para ser transmitida nos
lugares de saber e nos media. Há aqui também teoria da conspiração, mas
em versão doutoral e universitária, ministrada como se de uma ciência se
tratasse.
Esta
última forma de egoísmo lógico que revela o ódio à democracia
manifesta-se no discurso político corrente. Mas aparece magnificada em
relação a certos e determinados objectos. A aversão à democracia
israelita é sem dúvida um seu objecto preferencial. Mas a invasão russa
da Ucrânia é aquele que presentemente suscita as suas manifestações mais
radicais. Assim, para os seus adeptos, a verdadeira causa da guerra não
é a Rússia de Putin, mas antes os Estados Unidos, o Ocidente e a Nato.
Eis, aos olhos deste conspiracionismo, o invisível que tudo explica e
que a todo o momento a ideologia ocidental nos quer encobrir.
Muita
gente discute se o motor desta rejeição da democracia e da liberdade
tem uma origem primeiramente negativa ou positiva. Dito de outra
maneira: se aquilo que verdadeiramente a motiva é a detestação dos
Estados Unidos e do Ocidente ou o puro amor pela força bruta e pela
mentira incondicionada de que esta se serve para atingir os seus fins.
Bom, é certo que nenhum dos factores é completamente isolável do outro.
Mas é verosímil que seja o elemento por assim dizer positivo que
represente a força dominante. A afirmação é, regra geral, prévia por
relação à negação. O amor da força bruta – o amor da tirania – goza de
uma certa precedência por relação à rejeição da liberdade. A força bruta
e a mentira alucinada que a acompanha como justificação oferecem um
excesso de sentido que satisfaz muitos espíritos. São uma pura afirmação
liberta das condições limitativas da razoabilidade. No acto do seu
exercício e na curiosa libertação que nos garantem face à obrigação do
respeito pelos factos. Amar a tirania é, para o egoísmo lógico em geral –
tanto o inconsequente quanto o consequente, e sobretudo para este
último -, mais satisfatório do que amar a liberdade. A tirania do Eu
encontra nesse amor uma ilimitação que dificilmente o amor da liberdade
lhe permitiria.
Por
esta e por outras, o chamado populismo de direita, com todo o seu
cortejo difuso e inconsequente de raivazinhas anti-democráticas, e por
mais nefasto que seja, me parece muito menos perigoso do que o amor
teoricamente consequente pela tirania que uma vasta fatia da
extrema-esquerda exibe. No primeiro caso, temos direito a uma das
patologias possíveis da democracia. No segundo, à sua rejeição pura e
simples. As reacções à invasão russa da Ucrânia fornecem um exemplo
quase perfeito desse amor da tirania que é a própria substância política
de muitos espíritos.
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