Qualquer pessoa que trabalhe em casa, como eu, sabe que a explosão de ruído de que não se consegue prever o início ou o fim é disruptiva. Desgastante. Cansativa. Intolerável e por isso… vizinha chata. Eugénia de Vasconcellos para o Observador:
Quarta-feira.
Debate do OE. Sento-me diante da televisão a tomar notas para a
crónica. De repente, percebo que o Partido Socialista e António Costa,
especialmente António Costa, estão a viver uma intensa relação mística,
porém delirante, com Passos Coelho, ausente do hemiciclo desde 2015.
Pergunto-me: será folie à deux, partilhada entre o Partido Socialista e o
seu Primeiro Ministro? Ou, se o colectivo não contar como um, deverá
chamar-se folie à famille socialista? Entre a «vozearia» e o «lamaçal»
esperei que, por associação, o nosso Primeiro-Ministro envergonhado
pelos 4,4 milhões de pobres, a metade do país que governa, citasse João
da Ega, n´Os Maias, quando diz «tenho a alma numa latrina e preciso de
um banho por dentro». Mas não. Orgulha-se da sua prestação. Desisto – já aconteceu anteriormente, não vou escrever sobre o debate. Decido-me pela vizinha.
Em
todos os prédios há uma vizinha chata. Manda o estereótipo que seja uma
solteirona ou uma viúva com dois gatos e um periquito. Sabe quem entra,
quem sai, queixa-se da música alta, do barulho das visitas, da falta de
limpeza nas escadas, da gritaria dos miúdos e da vida em geral. O meu
prédio não é excepção. Também tem uma vizinha chata. A vizinha chata sou
eu. Sem ser solteirona ou viúva, sem ter gatos nem periquitos, mesmo
sem ter a menor ideia de quem entra ou de quem sai, com as escadas
limpas, e ainda que gritaria de miúdos, ou cães a ladrar, não me
incomode, de todo, a vizinha chata, tenho a certeza, sou eu. O barulho
enlouquece-me. Shhh…
A
confirmação deste facto já anteriormente aceite por mim, chegou-me há
algum tempo, ao ler a The Atlantic Magazine, quando me deparei com um
artigo intitulado Why do rich people love quiet?
Devo confessar que, expectante, parei logo no fim do título só para ir
verificar o meu saldo bancário no telemóvel: continuava pobre. E com a
agravante de ter uma sensibilidade auditiva de rica politicamente
incorrecta.
A
autora do texto, Xotchitl Gonzalez, regressa à sua experiência como
aluna de uma minoria étnica, como a própria se define por ser
porto-riquenha, numa universidade de topo nos Estados Unidos, onde o
silêncio faz parte das regras não escritas de comportamento, nas
bibliotecas, quartos ou lugares de estudo. Um silêncio, então, em
conflito com a sua forma de estar e conviver, fosse a estudar ou a fazer
trabalhos com música alta, ou a conversar em idêntico volume.
Posteriormente, fala da migração desse silêncio característico do Upper
East Side para Brooklyn, onde vive, através do processo de
gentrificação, e de como esse silêncio se opõe, na sua opinião, a uma
«cultura de alegria» para a subjugar.
Neste
tempo em que todos os valores se equivalem num multiculturalismo
demolidor, é preciso bom senso. A nossa saúde sofre com o ruído:
hipertensão, insónia, falta de concentração, cortisol elevado, perda de
memória. Estes e outros sintomas diminuem com a exposição ao silêncio.
Reggaeton e silêncio, diga Xotchitl Gonzalez o que disser, na evocação
mais ou menos romântica da sua infância e raízes culturais, não se
equivalem.
Antes
de mudar para a casa onde vivo, há cinco anos, fui tomar café com os
meus senhorios. Simpáticos, informaram-me que no prédio havia pessoas
com alguma idade… percebi. E fiquei aliviada. Pensei, que bom, silêncio.
Eu também faço parte dos silenciosos: não obrigo os vizinhos a ouvirem a
minha música, nem faço sapateado com os saltos, não faço bricolage e
se, por acaso, for preciso usar berbequins ou martelos nalgum arranjo,
aviso o condomínio antecipadamente para que possa notificar os
moradores. Qualquer pessoa que trabalhe em casa, como eu, sabe que a
explosão de ruído de que não se consegue prever o início ou o fim é
disruptiva. Desgastante. Cansativa. Intolerável e por isso… a vizinha
chata. Como se sabe que há um fio de conforto discreto naquele zum-zum
diário de paredes meias com estranhos, pessoas como nós: o apito da
panela de pressão, o som do aspirador no dia certo em luta com os móveis
e os cantos das salas, a destreza na execução de uma peça repetida cem
vezes ao piano por mãos pequeninas que vão crescendo, o elevador que se
abre e a porta que se fecha. O quotidiano dos outros, ao nosso lado: uma
companhia.
Mas
a verdade é que vivemos numa cidade sem lei. Tudo é permitido e quando
não é, cria-se uma excepção: somos sobrevoados sem descanso e agora mais
ainda, sobram-nos três horas na paz relativa dos motores dos aviões.
Nos prédios com alojamento local, a «cultura da alegria», com música aos
gritos, bebedeiras pelas escadas e desconhecidos que entram à meia
dúzia em casas de um só quarto, bate de frente na cultura do trabalho e
de levar os miúdos à escola. Aos estaleiros de obra que nos rodeiam
todos os dias por todos os lados dão-se licenças excepcionais para que
trabalhem também aos sábados a par dos habilidosos do berbequim e do
martelo, reformados ou de fim-de-semana. E nem vale a pena falar
daqueles que ainda tentam viver nas zonas da baixa onde o mau turismo
invade as ruas diariamente, com os restaurantes e os cafés transformados
em bares numa movida deboomboxes, lixo e urina – enquanto escrevo isto,
decerto alguém acabou de anunciar mais um extraordinário prémio para
Lisboa, a melhor cidade para os residentes estrangeiros em geral que a
podem pagar. E podem pagar o preço do novo artigo de luxo: o silêncio.
Lisboa um dia será o novo Upper East Side.
Enquanto
esse dia não chega, recordo Victor Hugo a quem o ruído enlouquecia. Não
foi ele quem forrou o quarto onde escrevia, para o isolar, a cortiça?
Se lhe passar pela cabeça pensar, olha-me esta, a comparar-se com o
Victor Hugo, lembre-se: não é uma questão de talento, mas de ruído.
A autora escreve segundo a antiga ortografia
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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