Dadas as analogias que se podem estabelecer entre o comportamento de Putin e o de Hitler, qual seria a posição que os negadores da causalidade patente na invasão da Ucrânia adotariam em 1939? Texto do professor Paulo Tunhas para o Observador:
Ainda
não cheguei às maiúsculas, nem creio até que lá chegue, mas tenho-me
apanhado a pensar no bem e no mal. Não são, confesso, termos que utilize
frequentemente, nem sequer em pensamento. A coisa passa-se
diferentemente com “bondade” e “maldade”. Com esses termos sinto-me
razoavelmente à-vontade, até porque se colocam no mero plano da
psicologia descritiva e não têm ambições metafísicas. São termos
necessários ao nosso entendimento das coisas do dia-a-dia (todos nós
encontramos na vida exemplos de bondade e de maldade) e podemos usá-los
em sentido razoavelmente lato, sem necessidade de definições rigorosas
ou de voos especulativos. Podemos até reduzir em parte a bondade e a
maldade a outras características mentais. Por exemplo, creio que a maior
parte das vezes que fiz algo de “mau”, o fiz por falta de
discernimento, ou, se se preferir, por estupidez. E julgo que isso
acontece com a maior parte das pessoas.
Em
contrapartida, falar, mesmo sem maiúsculas, de bem e de mal requer uma
muito maior abstracção. É como se passássemos a lidar com entidades
autónomas em relação à nossa experiência que encarnam nos actos – ou, de
forma mais profunda, no carácter – dos indivíduos (as maiúsculas
enfatizam essa dimensão). Não são, ao contrário de “bondade” ou
“maldade”, conceitos puramente descritivos. Designam, em princípio, algo
acima destes, algo que produz o carácter dos humanos e o determina de
forma unívoca, sem vestígio de equivocidade. Deixo de lado o modo como
as religiões pensam estas coisas, e não pretendo falar da maneira como
as várias filosofias se referiram aos conceitos de bem e do mal, embora
esteja mais à-vontade no que diz respeito a este segundo tipo de maneira
de pensar (julgo saber o que são o bem e o mal para Leibniz ou Kant,
por exemplo). Fico-me, portanto, por esse traço distintivo muito
genérico dos conceitos de bem e de mal: são conceitos muito mais
abstractos do que os de bondade e maldade.
Acontece,
no entanto, que eles também têm lugar no discurso comum, sem que sejam
usados com preocupações religiosas ou filosóficas. As pessoas falam de
“bem” e de “mal” correntemente. Não tanto como de “bondade” ou “maldade”
– mas falam. Isso deve fazer-nos reflectir. Porque é, de certo modo, o
sinal de alguma naturalidade dos conceitos – e, secundariamente, de uma
continuidade entre o entendimento comum e o entendimento filosófico. É
claro que há diferenças. O bem e o mal, no discurso comum, não aparecem
como determinações inequívocas, como em certas tradições filosóficas,
mas sim como algo do qual temos uma intuição mais ou menos vaga. Sendo
vaga, essa intuição não é, no entanto, menos real, não designa uma mera
fantasia do espírito, por mais que ela esteja marcada pelas convenções
de cada cultura (nas teorias do contrato social, pela própria passagem
do estado de natureza ao estado civil). É nesse sentido, simultaneamente
vago e real, de “bem” e de “mal” que me tenho apanhado a pensar. Um
sentido “desinflacionado”, como se diz em filosofia.
E
tenho-me apanhado a pensar nisto por causa de várias reacções à invasão
russa da Ucrânia e de certas analogias históricas que ela evoca. Com
efeito, o que menos faltou por estes meses foi gente a defender que
nesta guerra não havia bem nem mal, que a única questão em jogo se
resumia ao conflito de interesses geoestratégicos e que qualquer outro
tipo de considerações era não só irrelevante como voluntariamente
encobridora da realidade. Esta doutrina tem sido igualmente partilhada
por gente de esquerda e de direita e comunicada em diversos tons, que
vão de alguma sofisticação teórica à brutalidade mais declarada, sem
que, no essencial, varie grandemente.
Dou-me,
de facto, mal com este entendimento das coisas. Não, obviamente, por
julgar que as questões geoestratégicas não se coloquem. Mas porque me
parece que tal redução exibe uma cegueira face a várias dimensões
essenciais do conflito que, confesso, não parou de me espantar. E em
primeiro lugar, obviamente, uma cegueira face à distinção crucial entre
agressor e agredido, cegueira essa obtida muitas vezes a custo da
inversão de relações causais patentes. Por exemplo: a Rússia limitou-se a
reagir a uma provocação ucraniana (ou, genericamente, do Ocidente), o
que lhe garante à partida uma dose substancial de inocência. Ou, se
quiserem, foi Abel que matou Caim. Essa cegueira é também, e
fundamentalmente, uma cegueira face às intuições comuns do bem e do mal.
Ela radica talvez naquilo que Kierkegaard chamava a “angústia face ao
Bem”, uma angústia que é, em última análise, uma angústia face à
liberdade. Mas, seja como for, esta cegueira, que visa uma “explicação”
das causas da guerra, elimina qualquer possibilidade da compreensão da
guerra.
Porquê?
Porque compreender esta guerra implica forçosamente colocar como ponto
de base a distinção entre agressor e agredido. A partir do momento em
que a distinção é recusada, ou invertida, ou relativizada, a
“explicação”, por mais realista que se pretenda, gira no vazio. A
cegueira face à distinção entre bem e mal, fundada na distinção entre
agredido e agressor – entre Abel e Caim, se se quiser –, é tão mais
extraordinária quanto os testemunhos empíricos de tal distinção são
inúmeros e as imagens que os revelam, que revelam simultaneamente a
derrelicção de uma população atacada e a extraordinária coragem da sua
resistência, possuem toda a força de uma indisputável evidência. A
estratégia que consiste em negar tal força, colocando-a sob suspeita de
“propaganda”, releva da má-fé (da recusa da evidência) ou do cinismo
puro e duro, também ele, talvez, uma manifestação da “angústia face ao
Bem”, do medo da liberdade. E o medo da liberdade, aqui, é, por via da
recusa da distinção entre o bem e o mal, o medo de compreender. Há
“explicações” especialmente fabricadas para impedir a compreensão. Uma
compreensão que, de facto, só é possível se aceitarmos a distinção entre
o bem e o mal.
Mas
convém ir mais longe. Dadas as analogias que se podem estabelecer entre
o comportamento de Putin e o de Hitler – uma analogia não funciona como
uma prova de identidade, mas uma analogia histórica é boa se o passado e
o presente colocados em relação se iluminam reciprocamente, o que me
parece ser o caso –, era bom perguntarmo-nos qual seria a posição que os
negadores da causalidade patente na invasão da Ucrânia adoptariam em
1939? É claro que, sendo as coisas o que são, seria arriscado, além de
injusto, declarar taxativamente que seria uma posição a favor de Hitler.
Resta que a recusa da distinção entre o bem e o mal – e lembro mais uma
vez que uso os termos no sentido das intuições vagas, mas reais, que as
pessoas comuns deles têm – nos permite pensar que poderia muito bem
ser, de facto, a favor de Hitler. A possibilidade está em aberto. A
agressão teria vindo das democracias: não faltou, de resto, gente
simpatizante dos nazis para o dizer à época.
Tudo
isto para dizer uma coisa. Não são apenas conceitos como os de
“bondade” e “maldade”, com a sua função descritiva, que são de legítimo
uso em matérias ético-políticas. Os conceitos de “bem” e de “mal”, num
seu entendimento desinflacionado, isto é, sem se alçarem a um patamar
metafísico, têm uma legitimidade que lhes vem da sua função
compreensiva. Não podemos compreender o mundo ético-político, por mais
que procuremos evitar o uso de abstracções, sem, em certos casos, a eles
recorrermos. Ou, de preferência, a conceitos que a eles indirectamente
reenviem – como, por exemplo, o conceito de “monstruoso” – e que
mantenham alguma dimensão descritiva. Sublinho: em certos casos. Porque,
para além da vasta legião de casos indiferentes, onde só um micrólogo,
ocupado com a mínima entidade moral microscópica, buscaria o bem e o
mal, o grosso do domínio ético-político passa muito bem sem o uso de
tais conceitos.
Há,
no entanto, situações que, pela sua própria natureza, os requerem. O
caso da invasão da Ucrânia é, sob este aspecto, exemplar. Como seria
exemplar, por exemplo, a longa história de monstruosidade que foi, desde
Lenine, a da defunta União Soviética e das suas vítimas. Aqueles que
inventam explicações que põem tais conceitos entre parêntesis nestas
situações cegam-se voluntariamente. Decidiram não compreender. A má-fé –
ou, nos casos mais extremos, o cinismo – coloca uma barreira à
compreensão. É que foi mesmo Caim que matou Abel. Isso, as pessoas
comuns que falam de bem e de mal sabem-no.
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