Não estaríamos diante de um processo eleitoral normal, mas de uma cruzada religiosa, uma encruzilhada que a todos deveria aterrorizar. Artigo do professor Denis Rosenfield para o Estadão:
Chegasse
um marciano ao Brasil, ficaria certamente confuso, se não espantado,
com narrativas político-religiosas do casal presidencial, dirigidas ao
casal opositor mais forte e por ele contestadas. Primeiro, ficaria
surpreso pelo uso indiscriminado da palavra demônio, como se
estivéssemos tratando de pessoas reais, numa espécie de cruzada
religiosa. Seria a luta dos bons contra os maus, de anjos contra
demônios, uns representando a verdadeira religião, os outros, a falsa.
Estranharia, segundo, que pouco se fala de soluções, ideias e propostas
para o País, como a fome, a alta inflação dos alimentos, a
irresponsabilidade fiscal do atual governo, que só procura dar benesses a
seus apaniguados, frequentemente sob a forma das mais diferentes
emendas parlamentares. Falta dinheiro de um lado, sobra de outro.
Provavelmente,
seria ele tentado a dizer que se trata de um país de malucos, o que
talvez fosse um juízo sensato diante deste manicômio em que se tornou a
política brasileira. Se se tratasse de uma encenação de bruxos e
demônios, certamente acharia mais interessante um filme de Harry Potter,
com bons atores e boas atuações, algo muito diferente do que ocorre
aqui, com atores deploráveis. Acharia que o mundo da ficção seria mais
estimulante que a política ficcional atual, com a diferença de que essa é
bem real. Nem conseguem fingir direito atos de compunção, que parecem
francamente grotescos. É como se a cena brasileira tivesse se tornado
uma história do capeta. Contudo, até essa comparação seria inapropriada,
pois o capeta é muito mais esperto.
O
pano de fundo de tal encenação político-demoníaca consiste na captura
do voto evangélico, em detrimento manifesto, por exemplo, de religiões e
cultos de origem africana, tratados com o maior desprezo. Na era da
tolerância e de regimes políticos laicos, que fizeram a separação entre
Igreja e Estado, volta-se a uma mistura extremamente perniciosa, que
pode ter consequências graves do ponto das liberdades e da organização
mesma do Estado. Note-se que a preocupação com o eleitorado evangélico é
essencialmente político-eleitoral, visto que os seus fiéis tendem a
seguir as orientações dos seus pastores, algo que não ocorre, por
exemplo, com os adeptos das religiões católica e protestante.
Entretanto,
isso não significa que os fiéis sigam os seus pastores como pessoas sem
rumo próprio. Se o fazem, é porque defendem valores determinados como a
luta contra o aborto, a ideologia de gênero, sobretudo nas escolas, a
união civil de pessoas do mesmo sexo, em defesa da ideia tradicional de
família. Se um pastor se desviar desses valores, seus fiéis dele também
se distanciarão. Eis, aliás, a imensa dificuldade do ex-presidente Lula
em ingressar neste segmento, pois a sua política e a do seu partido não
somente discordam desses valores, como sempre buscaram colocar seus
próprios princípios de uma maneira impositiva. É como se uma maioria
devesse simplesmente seguir uma minoria por ser esta politicamente
correta. Produziram, com isso, a adesão maciça dos evangélicos a
Bolsonaro.
Sobra
ao candidato petista aquele setor evangélico mais desfavorecido
socialmente, o que tem dificuldades com emprego, com o preço dos
alimentos nos supermercados, com educação pública ruim e precárias
condições de saúde. Aqui, são outros valores – os da sobrevivência – que
terminam por ganhar proeminência. Inteligentemente, o atual presidente
procura desviar a atenção destes desfavorecidos, dando-lhes um auxílio
socioeleitoral e procurando atraí-los para uma encenação canhestra, a de
que o demônio estaria à espreita.
À
espreita de quê? Comer a alma de alguém? Lançar os desavisados numa
sucessão intermitente de pecados, como se a danação estivesse a todos
ameaçando? Onde fica o País neste cenário tumultuado de crise social,
política e econômica? Sairá à caça de exorcistas?
Ocorre
que nossos exorcistas contemporâneos ganham uma roupagem política,
atribuindo a si mesmos uma missão. É como se Bolsonaro fosse não Jair,
mas um Messias autóctone, tendo como destino a salvação do País. Os
demônios não são, nessa perspectiva, alguns credos assim representados,
mas o comunismo, o ateísmo e os petistas e grupos esquerdizantes em suas
várias correntes. Tudo entra e se configura num quadro político
religioso, em que o “mito” de 2018 se apresenta como o Messias de 2022.
Naquele
então, poder-se-ia dizer que se tratava de um abuso de linguagem, uma
piada de mau gosto, mas uma piada. Todavia, nestes quatro anos, embora
de uma forma tosca e teologicamente não elaborada, o discurso do demônio
tende a adquirir uma significação real. Não estaríamos diante de um
processo eleitoral normal, próprio da democracia e do rodízio dos que
ocupam o poder, sempre de uma forma temporária, mas de uma cruzada
religiosa, uma encruzilhada que a todos deveria aterrorizar. O marciano,
apavorado, resolveu voltar ao seu planeta. Não entendeu nada!
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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