Radicalizados, ambos os lados ignoram que o liberalismo não se confunde com os abusos cometidos em seu nome. João Pereira Coutinho para a FSP:
Todas as profissões têm as suas piadas privadas. Entre os cientistas políticos, "Francis Fukuyama" e "o fim da história"
é uma delas. Sempre que alguém junta essas duas frases, há sempre risos
inteligentes e a frase fatal: "A história terminou com a queda do Muro de Berlim e depois veio o 11 de Setembro." As gargalhadas aumentam de volume.
Sou
insuspeito: várias vezes participei no deboche. Mas, aqui entre nós, a
paródia assenta num equívoco: Fukuyama não disse que a história
terminara com o fim da Guerra Fria. Ele apenas declarou que o modelo democrático-liberal era superior aos restantes. E não é?
Não
discuto abstrações. Discuto migrações. As democracias liberais têm os
seus competidores —em Cuba, Rússia, Turquia, China. Mas não vejo muita
gente querendo emigrar para lá.
Pelo contrário: o desejo é o inverso. Fugir de lá e vir para cá. Será que uma parte da humanidade está seriamente equivocada?
Escutando
os nossos extremistas de direita e de esquerda, não existe nada de
valioso por estas bandas. O liberalismo é uma fraude: gera desigualdade,
relativismo moral e apenas mascara relações de submissão e poder, em
que as elites dominam o povo (versão da direita) ou em que o povo
reacionário é um freio ao progresso (versão da esquerda). Hora de
abandonar o barco?
Um pouco de calma, aconselha o injustiçado Francis Fukuyama no seu livro mais recente: "Liberalism and its Discontents". É um dos melhores livros de Fukuyama.
Comecemos
pelo básico: liberalismo é uma doutrina política que emergiu na segunda
metade do século 17 com a ambição meritória de limitar o poder dos governos e proteger os direitos dos indivíduos.
Mas,
antes de ser uma doutrina, é também uma descoberta: os indivíduos não
são definidos pelo grupo a que pertencem, mas pela autonomia de que são
capazes para fazerem as suas escolhas e viverem suas vidas.
É
um pensamento nobre, nem sempre respeitado ao longo da história, mas
que foi sendo realizado, a duras penas, na defesa da tolerância perante a
diversidade, na proteção da economia de mercado e na luta por iguais direitos para todos.
Acontece que, no último meio século, direita e esquerda radicalizaram a própria noção de autonomia —e, com isso, desfiguraram as virtudes do liberalismo.
Para
Fukuyama, a direita neoliberal pôs o mercado acima de qualquer outro
valor social, ao mesmo tempo que demonizou o papel do Estado.
Esse
fanatismo pagou-se com desigualdade, desemprego maciço nas indústrias
tradicionais do Ocidente —e, claro, crises financeiras destrutivas que
abriram as portas aos populismos do momento.
A esquerda identitária também se entregou a uma nova interpretação das "políticas de identidade".
Originalmente, a ideia era completar o liberalismo pela integração de
grupos marginalizados no mesmo contrato social. A luta pelos direitos
civis nos Estados Unidos é um dos melhores exemplos.
Mas
a radicalização do conceito de autonomia por uma parte da esquerda teve
dois efeitos só aparentemente contraditórios, escreve o autor: por um
lado, levou os indivíduos a procurarem o seu ser autêntico, livre das
amarras sociais; por outro, levou esses mesmos indivíduos a concluírem
que as amarras eram mais fortes do que a essência prometida e nunca
encontrada.
A dimensão universalista do liberalismo, em que todos somos iguais em direitos e deveres, deu lugar a uma nova tribalização da sociedade, em que os grupos, e não mais os indivíduos, rejeitam os próprios pressupostos do modelo liberal.
É
assim que estamos, diz Fukuyama. A direita e a esquerda rejeitam o
liberalismo pelas suas alegadas patologias econômicas e sociais sem
entenderem que a maior patologia de todas é a forma drástica como o
liberalismo foi sendo aplicado.
Essa confusão conceitual gera seus monstros: entre a direita, um nacionalismo que parece importado do século 19, como se fosse possível regredir no tempo e restaurar uma uniformidade moral, étnica ou religiosa.
Entre
a esquerda, a mesma atitude reacionária que procura aprisionar os
indivíduos em identidades estáticas, essencialistas e pré-modernas.
Em
ambos os casos, os mesmos instintos censórios e paranoicos. Quem nos
salva desse manicômio? Ler Fukuyama é um princípio de salvação: no
diagnóstico do problema está já contido o esboço de uma terapia. Que o
mesmo é dizer: defender as democracias liberais significa não jogar fora
o bebê com a água do banho. O liberalismo não se confunde com os abusos
que foram cometidos em seu nome.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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