Corrupção é normal; roubalheira bilionária, não. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
É
uma banalidade entre cientistas sociais apontar problemas em países de
cultura católica e atribuí-los ao catolicismo. Os católicos, sempre
dispostos a reconhecer a falibilidade humana, tomam para si sem chilique
todas as críticas, sejam merecidas ou imerecidas. Por outro lado, quem
fizer o mesmo com o protestantismo há de se deparar com uma torrente de
reações emocionais. Como críticas não saem de máquinas, mas de cérebros
humanos, o natural é que esculhambar católico seja rotina, e que se
critiquem pouco os protestantes para evitar dor de cabeça (é mais fácil
criticar protestante dizendo que está criticando os brancos, que aí a
crítica passa por antirracismo). No fim, com todo o mundo falando mal
dos católicos e bem dos protestantes, fomenta-se na América Latina o
complexo de vira-latas. Os países de formação protestante seriam ricos e
maravilhosos; nós, uns pobretões sem valor. É preciso corrigirmos isso
para avaliar bem o que queremos para o país.
Os
Estados Unidos foram formados por seitas protestantes, e são capazes de
parar a República para averiguar o uso que Bill Clinton faz do próprio
pênis. O Brasil é de formação católica da Contrarreforma, e o pênis do
presidente só é assunto público se houver algum outro componente
envolvido. Entre nós, foi o caso do embarque clandestino de uma dama no
avião presidencial.
O
protestantismo surgiu justamente com o combate à corrupção da Igreja.
Não conheço um católico que aprove a venda de indulgências. Assim, é um
traço cultural católico aceitar que até as coisas mais importantes são
falíveis. A índole de certas culturas protestantes, por outro lado, é a
de desprezar as coisas que se revelaram falhas, dar as costas ao passado
e se proclamar no mínimo moralmente superior àquilo que foi descartado.
Na cultura católica, a falibilidade é uma regra da qual só o papa
escapa. Nas culturas protestantes, a infalibilidade deve ser uma meta do
pastor, do presidente e até do verdureiro. Falho mesmo, com certeza, só
o papa.
Corrupção é normal; roubalheira bilionária, não
Penso
que a análise da complacência do Brasil com a roubalheira tenha de
passar por essa cosmovisão católica. Por paradoxal que seja, penso que
voltar a retórica contra a corrupção – e não contra a roubalheira –
torne o brasileiro ainda mais propenso a aceitá-la. Pois, como diz o
teólogo por Roma e eterno crítico-defensor do PT Wilson Gomes, a palavra
corrupção “indica a mudança de um estado de coisas e pessoas, do
positivo para o negativo: corrompe-se o que era puro, íntegro, perfeito.
No cristianismo, é uma palavra religiosa: queremos a pureza, a
corrupção nos tenta o tempo inteiro”. Até aí, partilho do sentimento e
do raciocínio dele, pois discurso anticorrupção não me parece honesto.
Quando vinha do PSDB, então… Mas ele continua: “Para funcionar
politicamente, bastava decidir que o PT inventou a corrupção no Brasil e
se tornou um mestre nessa arte” (Crônica de uma tragédia anunciada, p.
26). Discordo. Enquanto se bateu na tecla da corrupção, o PT ganhou
eleição. O pensamento expresso por Wilson Gomes foi a desculpa ideal do
PT para se apresentar como candidato viável desde o Mensalão: a
corrupção não foi inventada pelo partido, é intrínseca à realidade
brasileira etc. Batendo nessa tecla, o PT ganhou mais três eleições
presidenciais. A mídia falava sozinha contra a corrupção e vendia o PSDB
como solução para o problema. Certo esteve o povo em não acreditar na
mídia. Na verdade, é bem provável que as acusações de corrupção tenham
sido especialmente graves para o PT em 2005 não por termos um horror à
corrupção, mas sim pelo fato de o PT ter se vendido como Partido da
Ética até 2003. Essa memória estava fresca demais para que o PT pudesse
se assumir como um adepto de Realpolitik. Restou-lhe dizer, bem ao
estilo católico, que errou, sim, e que neste país se tem errado desde
quando Cabral desembarcou. O PSDB, a seu turno, nos pedia que
acreditássemos que São Paulo era um estado sem corrupção. Pedia demais.
As
coisas só mudaram com uma brutal crise econômica induzida por Dilma
Rousseff, bem como com o dimensionamento da roubalheira e o conhecimento
dos destinatários. Com a Lava Jato, o brasileiro viu cifras bilionárias
saírem do país rumo não só aos bolsos dos políticos, mas também de
ditadores terceiro-mundistas. “Virar a Venezuela” tornou-se uma
assombração para nós. Por “Virar a Venezuela” entende-se chegar à
bancarrota, perder a soberania e deixar-se escravizar por Havana. Junto
da turma do Foro de São Paulo, Geddel é um anjo.
O outro vício
O
vício católico na política é perder o controle da situação, sendo
cozido a fogo lento na esculhambação e no oba-oba. Por outro lado lado,
se nos pusemos no lugar do protestante dos EUA, bem pensaremos que a
simplicidade desse povo é de cair o queixo. Eles só se escandalizaram
com Bill Clinton porque supõem que todos os presidentes casados – isto
é, homens cheios de poder que vivem cercados por secretárias e
puxa-sacos – se mantinham fiéis às suas esposas, sem nem uma puladinha
de cerca. De nada adianta olhar para a história dos reis da Inglaterra.
Na Europa há uma outra humanidade, corrupta e decaída, ao passo que na
América todos são anjos até prova em contrário. E assim cada governador,
cada autoridade, cada burocrata, não só é marido exemplar, como não
desvia um centavo do dinheiro dos pagadores de impostos. Sabem a USAID,
uma agência estatal dos EUA que se porta como uma ONG globalista no
resto do mundo, promovendo “empoderamento feminino”
e tudo? São uns anjos essas criaturas que pegam dinheiro dos EUA para
gastar em locais remotos, de difícil fiscalização pela oposição.
Um
bom “católico cultural” (digamos assim) deveria desconfiar desses
santarrões e julgar que os EUA são falíveis. Se eles não têm escândalos
de corrupção, isso é um péssimo sinal, pois quer dizer que está tudo
muito bem escondido. Um mau “católico cultural” padece de complexo de
vira-latas e se deslumbra com conversa mole. Infelizmente o PT não
ensinou nada à maioria dos letrados, que continuam procurando algum
grupo político que acabe com a corrupção, como se a corrupção pudesse
ter fim um dia.
Não
é razoável deixar a roubalheira se generalizar, nem é razoável esperar
que um dia nem um único guarda de trânsito deste país continental peça
propina para deixar de aplicar uma multa. Só se implementarmos uma
ditadura totalitária com vigilância massiva; neste caso, a corrupção sai
das pontas e vai para o topo do sistema.
O
razoável é considerar que a corrupção sempre vai estar presente, e por
isso mesmo deve ser combatida o tempo inteiro, como as sementes de baobá
do Pequeno Príncipe. Ao contrário do que diziam os procuradores da Lava
Jato, o fim da corrupção não é uma opção, e o Brasil não é um país fadado à desgraça por ter em sua formação os degredados, em vez dos puritanos virtuosos que foram para os EUA.
Deslumbramento com a Lava Jato
Em
1992, o Partido da Ética, que nunca fora vidraça, usava de todo
moralismo para pedir o impeachment do presidente Fernando Collor. Em
2016, o Partido da Ética eram os operadores do Direito, e o PT ocupava o
local de vidraça havia mais de 10 anos.
Como vimos,
os petistas que roubaram do Brasil para entregar às ditaduras
terceiro-mundistas foram em cana, ao passo que Dilma Rousseff, que deu 530 milhões de dólares
da Petrobrás para uma empresa belga comprando uma refinaria nos EUA,
passou pela Lava Jato com a pose de mulher honesta e os direitos
políticos intactos. O PT deixou de ser o partido dos “machos tóxicos”
que emulavam Fidel Castro e ficou com cara de PSOL. Hoje, até o MDB tem
cara de PSOL, com Simone Tebet bajulando Djamila Ribeiro e dizendo que
mulher vota em mulher. E mais: Lula entrou na cadeia como “macho tóxico”
comedor de picanha e saiu amigo dos veganos, preocupado com a pegada de
carbono.
Se
os operadores do direito se portam como partido e impõem agendas sem
voto, apegar-se ao combate à corrupção como fim em si mesmo torna-se uma
via para o totalitarismo. Porque as leis definem o que é corrupção e o
que não é; se as leis forem manipuladas para tornar crime entrar num
curso com a cor de pele errada, “combater a corrupção” significa
implementar tribunais raciais. Só podemos ter o combate à corrupção como
uma coisa boa em si mesma se pensarmos segundo uma ideia de bem que
independe de leis. Essa ideia não pode ser negativa; já o combate à
corrupção é negativo em si mesmo. Se o combate à corrupção tiver
sucesso, ele impossibilita que tal e tal coisa sejam feitas - mas não
diz nada quanto às coisas que devam devem ser feitas. Isto, só a
política resolve.
Mas,
para continuarmos em Dilma e no reino das finanças que tanto encanta o
lavajatismo, dou o exemplo de uma coisa que não é ilegal, mas causou
mais prejuízos ao país do que a Odebrecht. É o Ciências sem Fronteiras
(CsF), da Mulher Honesta.
Transferência de dinheiro brasileiro para Harvard
A Odebrecht desviou R$ 6 bilhões da Petrobras.
O CsF, feito dentro da lei, custou ao país R$ 13 bilhões. O projeto
criado por Dilma e encerrado por Temer consistia em mandar brasileiros
para fazer graduação nos Estados Unidos e na Europa, pagando as
mensalidades deles. As universidades não eram necessariamente baratas –
estavam incluídas as da Ivy League –, nem necessariamente boas – estavam
incluídos os community colleges estatais voltados para negros.
Não conheço nenhum membro da comunidade acadêmica que tenha se
responsabilizado pela ideia. Findo o programa, a Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência, basicamente um sindicato de acadêmicos, não
esboçou nenhuma defesa. Reproduziu em sua página
a matéria da Fapesp, que, empenhando-se em encontrar alguém que
defendesse o CsF, achou só uma associação de egressos do programa.
Ora,
nunca na história da universidade brasileira existiu o plano de enviar
graduandos para o exterior. Nunca, nunca mesmo. A universidade
brasileira está fundada na tríade ensino, pesquisa e extensão. O pai da
institucionalização da pesquisa brasileira é Anísio Teixeira, que criou a
Capes para fazer programas de pós-graduação. O legado de Anísio se
expandiu com os militares, que foram também os primeiros a fazer o
Estado financiar mensalidades privadas. Mas fizeram isso mantendo o
desenho de Anísio Teixeira, que deixava a pesquisa na pós-graduação
pública. O financiamento era entendido como um meio de ajudar os pobres
na ascensão social e dar ao mercado mão de obra qualificada.
FHC,
o “neoliberal”, manteve esse financiamento. Por muito tempo o Estado
financiar universidade privada era coisa “de direita”, enquanto que dar
dinheiro à universidade pública era coisa "de esquerda". Com Lula,
porém, o Estado brasileiro passou a financiá-las mais ainda, criando um
programa que pagava bolsas integrais ou parciais (o Prouni). Com isto,
não existe risco de as instituições de ensino levarem calote, porque
quem paga é o governo. Foi nessa época que conglomerados estrangeiros
passaram a comprar as faculdades locais e as unidunitês se
multiplicaram.
Anotemos
bem: Geisel criou um programa de financiamento estudantil chamado
Creduc, que FHC reformulou e botou o nome de Fies. São programas de
crédito para estudantes cursarem ensino privado. Quem paga é o
estudante. O Prouni é um programa de bolsas; quem paga é o governo. Foi o
primeiro programa de bolsas desvinculado de pesquisa.
O
CsF não só foi um programa de bolsas desvinculado de pesquisa, como
transferiu dinheiro brasileiro para o sistema de ensino da Europa e da
América do Norte, sendo este último um continente com um país com sérios
problemas relativos a endividamento estudantil. Segundo matéria do UOL de educação da época,
a maioria das bolsas era para os EUA e Inglaterra. Mas Portugal era um
país cobiçado por um motivo muito lembrado pelos críticos do programa:
os graduandos brasileiros sequer falavam a língua dos países aos quais
iam!
O resultado do CsF mais famoso foi o grupo de pagode Samba Rousseff.
Diferentemente das cotas raciais, o CsF não tem nenhum acadêmico que
faça campanha por ele. É um filho feio sem pai, em meio a um monte de
filhos feios com pais orgulhosos (ao menos eu não achei; o máximo de
apologia que vi do programa foi dizer que é pra agradar a classe média,
que sonha em mandar os filhos para fora do país).
Tem
que haver alguma explicação pouco republicana para o CsF. No frigir dos
ovos, até esses bonitões de Harvard que ficam falando mal do Brasil
embolsaram o nosso dinheiro. Se Dilma conseguiu fazer isso dentro da
lei, isso só a torna mais perigosa do que os corruptos pegos pela Lava
Jato.
De
minha parte, eu chamo o CsF de corrupção sem pestanejar. Chamo-o de um
escândalo de corrupção da educação. Cotas raciais são um escândalo de
corrupção moral. Mas só posso fazer isso por ter muito claro que a
corrupção não é a mesma coisa que afanar dinheiro público. Ao contrário
do que ensina a Lava Jato, um país é muito mais que um cofre cheio de
dinheiro público, e governar bem não é a mesma coisa que impedir o uso
ilegal de dinheiro público.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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