Uma das dificuldades de uma narrativa longa é blindá-la do que se passa fora do escritório, e Houellebecq, em "Aniquilação", imiscui-se em demasia. Refletimos sobre a reflexão e não a história. Ana Bárbara Pedrosa para o Observador:
Chegou
agora a Portugal, poucos meses após a publicação em França, o romance
Aniquilação, de Michel Houellebecq. Mais uma vez, o autor francês traz
através da literatura uma posição sobre o Ocidente, sempre marcada por
uma visão de declínio.
O
romance começa com a divulgação de uns vídeos online que se tornam
virais. Neles, o ministro de Economia de França é guilhotinado. Os
especialistas de imagem digital não conseguem perceber como foram as
imagens editadas, afirmando que o vídeo parece real. Logo a seguir à
divulgação, começam os atentados terroristas. França lança-se ao pânico,
começa uma campanha desesperada para as eleições presidenciais e ali,
no meio da ficção, estão figuras da política europeia actual.
A
ligar os fios da narrativa, está Paul Raison. Alto funcionário
ministerial, está em plena meia-idade e parece acomodado a coisa pouca.
Houellebecq descreve-o como habituado à miséria afectiva e, como não
podia deixar de ser no autor francês, à miséria sexual também. Este
último já se torna cansativo na prosa de Houellebecq, já que as
personagens vêm sempre maquinais, sempre presas ao mesmo grilhão, sempre
vítimas das circunstâncias. Mesmo neste romance, em que por momentos
parece que a narrativa vai escapar para outro lado, o assunto pontua-a
em demasia, e também vemos a mercantilização de mulheres como
omnipresente nos romances do autor. Em qualquer situação, de forma
inteiramente gratuita, lá aparecem prostitutas só para maquilharem um
parágrafo. E, como sempre no autor francês, parecem tão interessadas –
genuinamente interessadas – nos homens, potenciais clientes, quanto
estes nelas. Estas cenas aparecem muito a pontapé, sem qualquer papel na
leitura que não seja o de acordar o leitor para mais do mesmo. Ao
oitavo romance de um autor, já se espera mais alcance e menos repetição,
assim como menos robotização. Houellebecq é um dos casos em que o ego
do desejo masculino se escancara de forma mais evidente. A visão
masculina aparece sempre como verdade absoluta, não há como o autor
perceber que não tem ponta por onde se lhe pegue.
Voltando
a Paul Raison, cabe ainda dizer que é casado com Prudence, agora vegan e
adepta do Wicca, um movimento religioso neo-pagão. Os dois vivem em
Paris, cada vez mais separados. Raison vai permitindo à narrativa
entrelaçar-se, juntando-lhe os dois planos. O público e o privado
mesclam-se, e os momentos de thriller político são entrelaçados com a
banalidade da vida.
O
que é novidade neste livro de Houellebecq, que nos tem habituado à sua
repetição até à exaustão, é a existência da redenção e da esperança. As
personagens, ainda assim, vão sendo resistentes à empatia do leitor, já
que parecem conservadas no formol dos pontos estratégicos necessários
aos pontos que o autor às vezes mete no livro à martelada. Assim, o
papel do leitor torna-se largamente passivo, sendo o repositório de
informação sobre elas. Para mais, Houellebecq é não raras vezes
excessivamente palavroso, tendo uma tendência para explicar até não
restar mais nada e, com isso, para explicar até já ninguém se lembrar do
osso. Não se percebe bem se tal parte de um desejo de calibrar a prosa
ou de mascarar inseguranças sobre a construção das personagens. O que se
percebe é que, para o leitor, sobra pouco no que concerne à acção da
leitura. Não bastasse e ainda se nota, como em livros anteriores, que as
personagens são meros veículos – meras desculpas – para Houellebecq
levar avante a sua visão do mundo. Assim, o autor francês é incapaz de
sair de si próprio, construindo uma coisa à margem.
Com
esta estratégia, ao leitor é por vezes difícil deixar-se entrar na
narrativa, já que a narrativa vem sempre de braço dado com a condução
para a conclusão que Houellebecq quer. Ao mesmo tempo, nota-se a
instrumentalização da literatura para se chegar ao fim procurado pelo
autor. Com esta estratégia, o romance tem tendência para se transformar
numa resposta, ao invés de abrir perguntas. Fazendo-o, também fecha os
caminhos em vez de os abrir.
Houellebecq
tem ainda tendência para contar em vez de mostrar, e isso por si já é
suficiente para abrir um fosso com o leitor, que não vê as personagens
em acção. Assim, o tempo com elas reduz-se, e é difícil confiar na voz
que narra. Ao mesmo tempo, nota-se a facilidade dessa estratégia
narrativa, já que basta dizer sem criar os mecanismos para que as acções
criadas influam nos caminhos seguintes. Se o autor diz que “a Paul
parecia que X”, o leitor terá de acreditar que a Paul parecesse que X, e
isso impede-o de ver o momento em que a crença em X se formou ou se
provou.
Ao
mesmo tempo, à medida que vamos vendo uma ideia da França actual pelos
olhos de Paul, também vamos vendo, e é isso que Houellebecq ainda
consegue fazer bem, uma crise de enraizamento. A França actual parece
querer fazer-se por agentes que não lhe pertencem nunca e o presente
parece não só descartável mas também desprendido. Assim, o alto
funcionário do Estado parece também viver à margem do aparelho do
Estado: pertence-lhe, mas sente-lhe asco. Cumpre um papel enquanto finge
não fazer parte da peça.
Com
uma estrutura relativamente sólida, o romance tem o problema habitual: a
narrativa sofre sempre às mãos da reflexão. O autor reflecte, o leitor
lê, e por isso a reflexão posterior vem já descaradamente maculada pela
reflexão dada, sendo a leitura um acto de responder a uma reflexão e não
a uma história. Uma das grandes dificuldades de uma narrativa longa é
blindá-la do que se passa fora da janela do escritório, e Houellebecq
imiscui-se em demasia. Ao fazê-lo, domina demasiadas vezes o cenário
sobre o qual devia ter domínio ao ponto de se conseguir ocultar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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