Se Lula for eleito, ele encontrará um contexto regional que lhe permitirá buscar um papel de liderança inconteste. Muito diferente daquele que existiu na primeira onda vermelha, quando teve que dividir essa liderança com Chávez. Diogo Schelp para a Gazeta do Povo:
Eu
estava lá, em Caracas, em dezembro de 2015, quando a oposição deu uma
surra histórica no chavismo nas eleições legislativas, conquistando
maioria na Assembleia Nacional pela primeira vez desde a ascensão de
Hugo Chávez ao poder, em 1999. Lembro de conversar com eleitores dos
barrios, as favelas venezuelanas, que me disseram que se sentiram
estimulados a irem votar, esperançosos de conseguirem mudar os rumos do
país pelas urnas e apesar das manobras de Nicolás Maduro para empastelar
o voto, por causa de algo ocorrido a milhares de quilômetros dali: a
vitória de Mauricio Macri na Argentina, encerrando vários anos de
kirchnerismo. Sim, é espantoso, mas real. A política argentina inspirou
os venezuelanos a mandar um duro recado aos herdeiros do desastroso
projeto revolucionário de Chávez.
Como
bem sabemos, depois disso Maduro deu um golpe na Assembleia
legitimamente eleita e consolidou sua ditadura de esquerda na Venezuela.
Mas naquele final de 2015 começou a retração da maré vermelha na
América Latina, o período de cerca de dez anos durante o qual a esquerda
governou de maneira mais ou menos simultânea vários países da região,
incluindo Brasil, Venezuela, Argentina, Uruguai, Chile, Bolívia, Peru,
Equador e Paraguai.
Há uma nova maré vermelha
se formando na América Latina. O kirchnerismo voltou ao poder na
Argentina há pouco mais de dois anos graças aos erros cometidos por
Macri no manejo da economia. Nos últimos meses, ascenderam ao poder
Gabriel Boric, no Chile, e Pedro Castillo, no Peru. E, há uma semana, o
ex-guerrilheiro urbano Gustavo Petro foi eleito presidente da Colômbia.
Lula, pré-candidato à presidência no Brasil, está exultante. Ele
vislumbra uma reedição das parcerias de esquerda que dominaram o segundo mandato da sua primeira passagem pelo Palácio do Planalto.
Não
acho apropriado chamar a repetição do fenômeno da prevalência
esquerdista na região de "onda rosa", pois não há indícios de que
possuam traços menos radicais, estatistas ou autoritários do que na
primeira onda. Mas tampouco dá para dizer que vai ser igual, um mero
"repeteco".
Para
fazer uma boa análise em relações internacionais é preciso deixar as
paixões políticas de lado e reconhecer que há muitas variáveis que
impactam na configuração do cenário regional.
A
afinidade ideológica entre os governos dos países é uma dessas
variáveis, sempre citada, mas superestimada, para explicar as escolhas
em política externa. Há evidências negligenciadas de que essas relações
preferenciais sempre foram pautadas pelo poder da grana, mais
precisamente o interesse de grupos privados em expandir suas atividades
para países vizinhos, onde podiam atuar em ambientes institucionais
flexíveis, isentos de licitações e longe dos olhos dos órgãos de
controle brasileiros.
O
boom das commodities, agrícolas e petrolíferas, durante a primeira onda
vermelha ajudou bastante o projeto de expansionismo diplomático da
Venezuela e do Brasil na região. Há quem critique a avaliação de que a
ausência dessa conjuntura internacional favorável limitará a capacidade
de tocar adiante esses projetos de poder. Esses críticos consideram que
não faltarão recursos para isso, pois eles virão, nessa segunda onda, de
atividades criminosas, da "economia do ilícito".
Acho
que a crítica erra o alvo, porque a principal questão não é se os
governos terão recursos para financiar seus projetos de poder, e sim
quais objetivos serão perseguidos.
Internamente,
o objetivo será aparar as arestas e "melhorar" a estratégia para
perpetuar-se no poder, tolhendo a margem de manobra da oposição e
evitando os contratempos do passado? Provavelmente.
Externamente,
no âmbito da estratégia regional, resta evidente que os novos governos
de esquerda vão retomar as relações com a Venezuela e emprestar seu
apoio para dar sobrevida ao regime de Maduro. Mas convenhamos, os
últimos anos de um contexto em que o ditador venezuelano enfrentou um
entorno de governos de direita, hostis a ele e de apoio à oposição
liderada por Juán Guaidó, tampouco serviram para trazer a democracia de
volta à Venezuela. A perspectiva, se ficasse como estava, era a de
permanência de Maduro no poder, com ou sem "nova maré vermelha".
O
que mais se pode dizer em relação aos objetivos? Eu diria que o
primordial será uma aproximação como a China nunca antes vista. Há
diversos fatores para isso, mas me restrinjo a destacar um deles.
Se
Lula for eleito, ele encontrará um contexto regional que lhe permitirá
buscar um papel de liderança inconteste. Muito diferente daquele que
existiu na primeira onda vermelha, quando teve que dividir essa
liderança com Chávez.
Tanto
Lula quanto Chávez compartilhavam da ideia de que o período de
hegemonia solitária dos Estados Unidos havia sido ultrapassado e que era
preciso promover uma nova era multipolar, ou seja, em que o poder
global se dispersaria em vários polos. Mas as perspectivas de ambos eram
diferentes. A política externa de Lula almejava reformar os organismos
internacionais para atingir o objetivo de uma nova ordem multipolar, na
qual o Brasil teria um papel de destaque como líder de um polo regional
ou de nações do hemisfério sul.
Chávez,
por sua vez, tinha uma visão revolucionária de seu papel no mundo. Ele
não queria reformar, ele queria destruir e colocar outra coisa no lugar.
Na prática, isso significa que Chávez cooperava com Lula em muitos
aspectos no âmbito internacional, mas também impunha barreiras a
diversos pontos da agenda regional do brasileiro. Isso está bem descrito
em estudos de José Briceño-Ruiz.
Lula
sem Chávez, portanto, teria a chance de buscar a liderança regional sem
o contraponto de outro governante com uma visão por vezes conflitante.
Mas isso não significa que o resultado seria melhor porque, como já
afirmei antes, o contexto internacional mudou. E, ainda mais importante,
é o fator imponderável de como vão se configurar os interesses privados
e sua interação com agentes públicos na definição e execução de agenda
em política externa. Para onde esses interesses vão direcionar o olhar
de uma nova gestão petista, caso ela venha a ser confirmada pelas urnas?
Em
artigo recente na revista Foreign Policy Analysis, "Myths of
Multipolarity: The Sources of Brazil's Foreign Policy Overstretch",
Schenoni et al observam que na primeira década deste século a política
externa brasileira expandiu-se para além de sua capacidade, embebida que
estava pelo mito da multipolaridade — e incentivada por interesses
privados. O tal mito, nos últimos anos, foi atropelado pelo fato de que,
em vez de uma ordem multipolar, o que está se consolidando nas relações
internacionais é uma polarização entre Estados Unidos e China.
Uma
nova "onda vermelha" na América Latina, sejam quais forem as ambições
de liderança por parte de Lula, seria inevitavelmente pautada pelo
esvaziamento do mito da multipolaridade. Um cenário possível é o de que
veremos, na política externa dos novos governos da região, uma
permeabilidade nunca antes vista aos interesses da China — acentuada
justamente pela fragilidade econômica em que seus países se encontram e
delimitada por interesses privados nacionais com ambições externas.
Se
quisermos entender quais caminhos serão escolhidos pelos governos da
nova onda vermelha da América Latina e, especialmente, do Brasil, será
preciso tentar antever quais vasos comunicantes se estabelecerão entre grandes grupos empresariais e os novos donos do poder.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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