Por isso, filósofos, psicólogos e historiadores pesquisam o irracional como componente da nossa história moral. Luiz Felipe Pondé via FSP:
Acreditar
na razão com uma fé cega é um equívoco recente na história e
pré-história da humanidade. Essa superstição instalou-se definitivamente
no século das luzes, o século 18.
Esta
constatação —de que a crença cega no racionalismo é um equívoco— não
implica um culto à irracionalidade nem a negação do valor da razão, é
apenas uma constatação da própria razão.
Como dizia o filósofo Blaise Pascal no século 17, "nada mais típico da razão do que reconhecer seus próprios limites".
Por
isso mesmo, o que está fora do escopo da razão —o irracional— é um
problema voltado para o pensamento racional e não para bobagens do senso
comum.
Nada
do emocionalismo barato que permeia o papo furado sobre empatia. Falar
do irracional é uma atividade da razão, um esforço para identificar
elementos na ação humana que são impactados por agentes estranhos à
autonomia do pensamento racional.
Por
isso mesmo, muitos filósofos, psicólogos, historiadores, inclusive da
literatura, pesquisam o irracional como componente da nossa história
moral.
A vida é atravessada por elementos irracionais todo dia. Sonhos premonitórios —que assim pessoas os creem— intuições, sensações físicas fortes, ideias fixas, radicalismos políticos, ódios, paixões enlouquecedoras —essas andam condenadas pela histeria ideológica—, enfim, muitos são os exemplos.
Mas,
se você quer entender como se coloca o irracional sob uma lupa para ver
como ele funciona —seu impacto, alcance, estrutura e dinâmica— dou como
exemplo os estudos de E.R. Dodds (1893-1979), um historiador irlandês
da Grécia antiga.
"The
Greeks and the Irrational", Beacon Press 2020 —sem tradução em
português—, é exemplo magistral de como se identifica o irracional no
comportamento e na cultura de um povo como o grego antigo, uma das
maiores culturas que já caminhou sobre a Terra. Claro que a fonte
histórica aqui são os textos de época dos vários autores gregos de
então: dramaturgos, autores dos épicos, oradores, filósofos,
historiadores, "loucos".
Um dos primeiros tópicos é a manifestação do que Dodds chamará de "intervenção psíquica". O caso de Agamemnon, rei dos gregos na guerra contra os troianos, servirá de paradigma.
Usando
os relatos sobre seu conflito com o mítico guerreiro Aquiles na disputa
pela amante escrava deste, que foi roubada por aquele, o historiador
apontará vários momentos em que as ações do rei são referidas como
causadas pelo "atê", palavra grega recorrente que, ainda que apresente
significados secundários variados, sempre mantém o sentido primário de
intervenção do sobrenatural —divino ou demoníaco— sobre o agente humano,
roubando-lhe a autonomia do pensamento e das ações decorrentes.
Um
outro fator investigado é a herança moral familiar ancestral, traço
característico de inúmeras culturas antigas. O "miasma", ou a
contaminação dos descendentes por alguém que cometeu algum pecado mortal
no passado —sendo a "hybris" ou desmedida o pior de todos no universo
grego antigo—, é outro exemplo recorrente na literatura grega antiga. A
vítima do "miasma" terá sua vida, seus pensamentos, emoções e ações
contaminados sem possibilidade de redenção senão o castigo.
Antígona,
narrada por Sófocles (497-406) em peça homônima, é um exemplo máximo.
Sua autonomia é atravessada pelo fato de ser filha de um útero
incestuoso —sua mãe, Jocasta, era sua avó, e seu pai, Édipo,
era seu meio-irmão por ser filho de Jocasta. Por isso ela se considera
indigna de continuar vivendo. Via-se como uma mancha no mundo.
A
bênção da loucura com dons proféticos. Sonhos com mortos que trazem
informações essenciais para os vivos. Cachorros nos templos —até hoje na
Grécia as ruínas dos templos têm "cães de guarda" cuidados pela
população— que lambem feridas humanas e as curam.
Dominada
por crenças no sobrenatural, nossa vida psicológica caminha por um
estreito passo entre o medo, a ansiedade e a esperança.
A
razão é apenas uma pequena parte dela, mas nem por isso menos
importante. A alma irracional nos habita, às vezes como êxtase, às vezes
como pesadelo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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