Se eu não me rebelo contra a natureza do meu trabalho, por que os atores se rebelam contra a natureza do trabalho deles? Por que diabos eles têm que se meter em política, dando conselhos com ares paternais etc? A crônica de Alexandre Soares Silva para a revista Crusoé:
Atores
falando de política. Atores falando de qualquer coisa. Mas atores são
justamente as pessoas que a sociedade paga para ficar em silêncio e só
falar o que leem num papel.
Enquanto
escrevo, Matthew McConaughey está na Casa Branca, de óculos, fazendo um
discurso emocionado (murros na mesa) sobre controle de armas. Mark
Ruffalo está falando alguma coisa sobre a Amazônia. Leonardo di Caprio
está tuitando sobre o excesso de dióxido de carbono na natureza, usando
como mesa as nádegas de uma modelo madrilenha. E Taís Araújo deve estar
tentando convencer os próprios gatos a não votar nulo.
A
sociedade escolheu um único grupo de pessoas para nunca dizer o que
pensa, e essa escolha é racional e se baseia numa combinação de boa
aparência, boa voz e óbvia incapacidade de pensar. Daí escolheu um outro
grupo de pessoas, chamados de roteiristas (uma escolha racional baseada
na má aparência, má dicção e uma vaga capacidade de pensar), para
escrever num papelzinho o que os atores têm que dizer, se eles tiverem
que dizer alguma coisa.
Em
outras palavras, os atores ganham para não dizer o que pensam. E ganham
bem, muitos deles. Recebem mansões, jatos, helicópteros, lanchas, para
não dar a opinião deles sobre o SUS ou a Guerra da Ucrânia. É só o que
eles têm que fazer. Acordar cedo, tomar um smoothie de frutas, tomar sol
à beira da piscina enquanto decoram o que outra pessoa pensou por eles,
daí entrar no carro que o estúdio mandou pra casa deles, entrar no
estúdio, se maquiar, falar umas piadas pros maquiadores e pra
coadjuvante bonitinha, daí chegar na frente das câmeras, falar “Puxa,
Noêmia, não é bem assim, ponha a mão na consciência”, tirar a maquiagem e
voltar pra casa.
São
exatamente como políticos. Atores e políticos falam o que outra pessoa
(às vezes um comitê de pessoas) escreveu. Mas políticos são mais
espertos. Não sabemos o que os políticos pensam. Nunca na história da
humanidade ninguém jamais soube o que um político realmente achava de
alguma coisa. Temos uns palpites, e é só. Por que atores não podem ser
igualmente espertos?
Mas
os atores não se controlam e saem improvisando coisas a troco de nada. É
uma bobagem, porque atores têm uma posição muito mais agradável que a
dos políticos. Atores são políticos que não precisam se meter em
intrigas políticas. Podem passar dias inteiros recebendo massagens
tailandesas e comendo salada de pepino. Mas não, não é o suficiente pra
eles, eles têm que “dar uns toques”, “mandar a real” etc. para o público
no Instagram, como missionários cristãos do século XVI ensinando tribos
inteiras a não comer carne humana.
Veja
o meu caso. Eu sou roteirista. O que isso significa? Que a sociedade me
paga para não aparecer na frente das câmeras. “Não, não”, a sociedade
me diz, “fica lá atrás pensando o que esse cara bonito aqui vai dizer”. O
meu trabalho é pensar as coisas que as pessoas bonitas falariam se as
pessoas bonitas fossem capazes de pensar antes ou enquanto falam. Como
entendo bem a natureza do meu trabalho e não me rebelo contra ela, não
ando até a frente da câmera e começo a falar o que eu mesmo pensei.
Seria absurdo. Esse é o trabalho de alguém com cabelos sedosos e um
índice de gordura corporal abaixo dos vinte.
Se
eu não me rebelo contra a natureza do meu trabalho, por que os atores
se rebelam contra a natureza do trabalho deles? Por que diabos eles têm
que se meter em política, dando conselhos com ares paternais etc?
Um
amigo meu tem uma teoria. Nós dois conhecemos um ator, muito talentoso,
que disse uma vez que o seu trabalho é tão fácil que ele “morre de
vergonha”. Disso meu amigo teoriza o seguinte, e estou aqui concordando
com ele: todos os atores bem-sucedidos têm essa vergonha. O pagamento
pelo trabalho deles, em dinheiro, respeito e fama, é tão desproporcional
ao esforço exigido que eles se sentem permanentemente culpados.
E
o que fazem com essa culpa? Nos casos mais benignos, essa culpa os leva
para as drogas; nos casos mais severos, ao ativismo político.
Mas
tenho que confessar que quando calha de um ator dizer algo com que
concordo, aí, de repente, não me incomoda nem um pouco que ele dê suas
opiniões. Como esse Tiago Leifert falando que é impossível votar no
Lula. De repente, acho simpático. Por que acontece isso? Não sei, é um
fenômeno psicológico misterioso.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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