É preciso resgatar uma antropologia filosófica que permita um fecundo diálogo entre natureza e liberdade, bem ao contrário das antropologias que permeiam os postulados dos movimentos dessa nova cultura que nos prometem, pela oposição entre liberdade e natureza, um “admirável mundo novo”. André Gonçalves Fernandes para a Gazeta do Povo:
O
ser humano sempre optou pela busca da verdade. Aliás, ele vive
tensionado por isso, porque não aceita a indigência desumanizante
imposta por ideias ou filosofias desconstrucionistas e que, no lugar da
busca pela verdade, propõem o mais puro ceticismo, pessimismo ou mesmo o
nada como resposta aos fins últimos do homem. A história da humanidade
está aí para nos ensinar muito a respeito.
Hoje,
no entanto, existe um movimento global que compreende uma nova “justiça
social” e movimentos identitários políticos que compõem uma nova
realidade. Alguns grupos de liderança secular de elite, sem interesse em
tradições ou culturas, como, por exemplo, a Open Society Foundations,
de Geroge Soros, são responsáveis por corporações, governos,
universidades, mídia e instituições profissionais que desejam
estabelecer o que pode ser chamado de civilização global construída
sobre uma sociedade de mercado e guiada pela ciência, tecnologia,
valores humanitários e ideias tecnocráticas sobre a organização da
sociedade.
Nessa
visão de mundo de elite, não há espaço para sistemas de crenças
“ultrapassados”, fundamentos bioéticos ou religiões bimilenares, porque
tudo isso atrapalha as tentativas de anulação – ou correção – das bases
naturais sobre a vida e a pessoa humana, como o casamento e a família,
sempre alvo de ataques desses grupos.
Novos
movimentos sociais baseados em matrizes identitárias artificiais ou em
sistemas de pura ideologia política assumem as pautas sociais e passam a
forjar uma novilíngua. Surgem termos como “justiceiro social”, “cultura
woke”, “políticas de identidade isso ou aquilo”, “interseccionalidade”,
“ideologia sucessora”, cujo propósito comum é o de explicar o mundo
atual, oferecendo um sentido ou sentimento de pertença a uma comunidade,
em suma, um propósito último de vida.
A
título de exemplo, tomemos a “cultura woke”, cuja “postura de alerta”
(Staywoke!) propõe uma espécie de “pauta de salvação”. O raciocínio
seria o de que podemos não saber de onde viemos e para onde vamos, mas
sabemos que temos interesses em comum com aqueles que compartilham nossa
cor de pele, nossa identidade de gênero ou nossa posição institucional
na sociedade.
Também
sabemos que nosso grupo está sofrendo e isolado sem culpa nossa. A
causa de nossa infelicidade coletiva é que somos vítimas da opressão de
outros grupos de nossa sociedade. Contudo, somos “libertados” e podemos
achar a redenção por intermédio da luta constante contra nossos
opressores, travando uma batalha pelo poder político e cultural em nome
da criação de uma sociedade igualitária.
O
Black Lives Matter (BLM) é um exemplo pronto e acabado desse
raciocínio, assim como a multidão de seguidores da Greta Thunberg que,
aos gritos, costuma puxar as orelhas de adultos “insensíveis” ao
problema climático em suas conferências em academias e universidades.
Dessa
forma, o mundo é visto como uma grande divisão entre “inocentes e
culpados”, “aliados e adversários” ou “nós e eles”, numa espécie de
imenso Fla x Flu, que diagnosticaria as demandas e sofrimentos sociais e
as tendências de discriminação e de exclusão de oportunidades em
comunidade.
Nessa
visão onicompreensiva da realidade, o que me parece evidente é a
criação de novas formas de divisão social, discriminação, intolerância e
injustiça. O problema central desses movimentos sociais é uma questão
teórica de antropologia filosófica: reduzir o significado de ser humano a
qualidades essencialmente físicas ou sociológicas, como cor da pele,
sexo, noções de gênero, origem étnica ou posição social.
E
como efeito desse problema teórico, a santíssima trindade da maioria
destes movimentos – diversidade, inclusão e igualdade – tem provocado,
sobretudo na educação e na economia, a adoção da raça, etnia, gênero ou
preferência sexual como a característica fundamental que define cada
pessoa. Esses itens passam também a definir as pautas das principais
políticas públicas e o modo de resolução dos conflitos sociais, sejam
coletivos ou individuais, no sistema de justiça comunitário.
Semelhante
ao marxismo, tais movimentos mudaram a mecânica da luta de classes pela
luta das identidades. Seu objetivo claro é a transformação da cultura e
da sociedade de acordo com seus próprios postulados antropológicos.
Eles querem desmantelar, a todo custo, a dita civilização ocidental,
porque veem nela um sistema genuinamente opressor.
Um
bom exemplo disso é a “cultura do cancelamento”: em favor do fim da
“mentalidade escravocrata inconsciente” que toma conta da maioria dos
indivíduos de uma sociedade, é preciso “cancelar” Monteiro Lobato,
boicotar fotos em que um sujeito aparece tomando um copo de leite puro
ou, ainda, envergonhar aqueles que, racionalmente, discordam disso tudo.
Já
fui vítima disso quando discordei dos métodos políticos do BLM,
alertando que, ao contrário do movimento dos direitos civis dos negros
na década de 1960, ele não busca corrigir a consciência e a cultura
americanas com espírito construtivo e dialógico. Fui chamado de
“capitão-do-mato”, o que, evidentemente, vindo dessa turma, foi recebido
como um elogio.
Outro
exemplo é o feminismo, que começou lutando pela igualdade civil e
profissional para as mulheres, o que foi ótimo. Mas com o tempo o
movimento prosseguiu em direção a campos em que as diferenças sexuais
não fazem tanta diferença, como a política e a cultura. Foi mais um
passo na tentativa de transformar mulheres e homens em criaturas
andróginas, cujos papéis – no entender desses grupos – devem ser
semelhantes e cujas emoções e ações idênticas. A sociedade ocidental
aloca enormes recursos para tentar igualar homens e mulheres neste nível
e já se disse, inclusive, que existe um projeto de igualdade sexual que
pretende tornar os homens socialmente mais parecidos com as mulheres –
avessos ao risco, cautelosos e sociáveis – e as mulheres mais parecidas
com os homens – levando-as sexualmente à promiscuidade, egocêntricas e
menos emotivas.
A
ideologia de gênero caminha na mesma trilha equivocada. É cada vez mais
frequente o diagnóstico de um menor com “disforia de gênero”. Durante
décadas, os psicólogos trataram a disforia com a chamada "espera
vigilante" (watchfulwaiting), um método psicoterapêutico que busca
encontrar a fonte da disforia de gênero de um indivíduo, reduzir sua
intensidade e, finalmente, ajudá-la a se sentir mais confortável
sexualmente em seu próprio corpo.
Todavia,
na última década, a “espera vigilante” foi trocada pelo “cuidado
afirmativo” (affirmativecare), que pressupõe que os menores já sabem o
que é melhor para eles. Os defensores dessa teoria exortam os psicólogos
a corroborar a crença de seus pacientes de que estão “presos” no corpo
errado. A família, então, é pressionada a ajudar o menor a fazer a
“transição” para uma nova identidade de gênero; depois, as pressões
recaem sobre os pais para começarem com os passos concretos para ajudar
seus filhos no caminho para a “transição para o corpo certo”.
O
que chama a atenção é a completa mistificação de tudo o que precisa ser
feito para a transição sexual, a negação do que ela representa, os
riscos colaterais – como a automutilação, a depressão e o suicídio.
Igualmente, não se fala dos obstáculos que existem para os que depois
percebem que não estavam num “corpo errado” e, por isso, desejam voltar
pela “detransição” (retorno ao próprio sexo biológico). Assim, a fluidez
de gênero e o igualitarismo sexual tornam-se a nova base antropológica
da identidade sexual e, como efeito, a sociedade torna-se um grande
campo de reeducação ideológica. O mesmo efeito, mas por outros filtros
antropológicos artificiais, poderia ser dito dos demais movimentos.
Existe
uma estreita relação entre os princípios antropológicos da democracia
moderna e tais movimentos. Somos testemunhas de uma visão de democracia
que, em seu delírio de liberdade sem limites, resolveu ficar bêbada de
tanta liberdade e, assim, sonha em atingir as alturas existenciais que o
desenvolvimento tecnológico viabilizou materialmente. Mas,
infelizmente, esses movimentos perderam a verdade antropológica sobre a
pessoa humana. É isso que explica seus condicionamentos extremistas e
sua abordagem severa, intransigente e implacável no campo da práxis
política e social.
Como
esses movimentos negam a verdade da pessoa humana e propõem versões
mutiladas de antropologia filosófica – não importa quão
bem-intencionados possam ser –, ao cabo não podem promover uma
prosperidade humana autêntica. Pelo contrário, como já se vê em vários
países, provocam novas formas de divisão, discriminação, intolerância e
injustiça.
É
preciso resgatar uma antropologia filosófica que permita um fecundo
diálogo entre natureza e liberdade, bem ao contrário das antropologias
que permeiam os postulados dos movimentos dessa nova cultura a que
assistimos e que nos prometem, pela oposição entre liberdade e natureza,
um “admirável mundo novo”.
André Gonçalves Fernandes, Post Ph.D., é juiz de Direito e professor- pesquisador.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário