Não apenas as pessoas têm biografias, nem apenas os dentes têm raízes, também os têm as palavras. Deonísio da Silva via Oeste:
Numa
das pestes de Lisboa, inspirado em episódio bíblico tido por apócrifo,
um pintor belga tratava de antigas ameaças à mulher ainda presentes
nesta outra pandemia
Dois
dos três homens a acusavam de adultério e ela dependia do terceiro para
não ser morta a pedradas. A pintura a óleo sobre madeira de carvalho
mostra uma mulher jovem e linda trajando um longo vestido vermelho com
dobras. São quatro pessoas e três delas olham para um juiz sentado num
trono com dossel.
O Profeta Daniel e a Casta Susana, de Francisco Henriques, 1518 |
Quer
dizer, era no tempo em que homens julgavam as mulheres sem clemência
alguma por qualquer coisinha. Faz muito tempo que ocorreu isso? Sim, foi
há milhares de anos, bem longe do Brasil, mas muitos feminicídios
estarão ocorrendo nesta pandemia no país que ocupa o desonroso quinto
lugar entre nações que mais assassinam mulheres no mundo.
Todos
os personagens do quadro morreram: a ré, os acusadores, o juiz. Poucos
anos depois de concluí-lo, morria em Lisboa, levado pela peste de 1518,
também seu autor, o belga Francisco Henriques. Obedecendo a seu mecenas,
o rei português Dom Manuel, o artista entrara na onda de representar
temas bíblicos para atender a encomendas das Cortes católicas, ainda
mais quando inspirados em episódios considerados apócrifos pelos
protestantes, por causa da Reforma, contra a qual já se organizava o
movimento da Contrarreforma. Francisco Henriques retratou, então, a
absolvição que dera à história um final feliz para a acusada e punira
duramente os acusadores.
A
peste que levou o pintor ia e voltava naqueles anos e foi devastadora.
Ele quis sair de Lisboa, mas o soberano obrigou-o a permanecer e ele
ficou. Afinal, manda quem paga e obedece quem faz o trabalho.
Todavia
o povo continuava vivendo, mulheres concebiam, crianças nasciam, tanto
que alguns anos depois nascia o maior poeta português, nosso velho
conhecido dos anos de formação. Dentre os leitores desta revista,
certamente há quem se lembre das dificuldades impostas por seus versos
quando éramos obrigados a pôr em ordem sintática esclarecedora o que ele
contava na primeira estrofe de Os Lusíadas de modo tão arrevesado.
Sim,
leitores, falo de Camões, que no Brasil é ainda muito popular e designa
conhecido prato com um ovo sobre o canto do bife para lembrar que o
poeta perdeu um dos olhos em batalha travada em Ceuta, enclave espanhol
situado no Marrocos, na África.
A etimologia ensina que, mesmo contrariando o significado de origem, o verdadeiro sentido fica mais claro quando descobrimos o que a palavra significou no passado. Ceuta é um desses casos. Veio do latim Septem, sete, em razão dos sete pequenos montes simétricos da cidade e virou Septa ou Ceuta depois do domínio árabe e por fim Ceuta. Não apenas as pessoas têm biografias, nem apenas os dentes têm raízes, também os têm as palavras ditas e escritas entre uma peste e outra, entre uma guerra e outra. Enfim, pela vida afora, desde as primeiras, apenas balbuciadas, até as últimas, talvez sussurradas, quando dá tempo.
O
quadro trata da ameaça de um feminicídio avant la lettre, afinal
evitado. As criaturas representadas são ainda mais famosas e conhecidas
do que seu criador. Os quatro personagens em destaque podem ser
identificados neste trecho do best-seller número um do mundo, a Bíblia,
uma palavra vinda do grego Biblos, nome original da atual Beirute. Foi
por isso que o livro se chamou biblos: ali era embarcado o papiro para
fazê-lo.
O
texto bíblico conta que a verdade venceu a mentira, tema também de uma
marchinha de Ary Barroso, lançada no Carnaval de 1940: “Quando conheci a
casta Suzana,/ Nas areias de Copacabana…/ Era namorada de um “Chinês”/
Mas olhava assim para um “Japonês“.
A
marchinha e o texto bíblico revolvem temas e problemas de um
julgamento. Uma mulher judia chamada Suzana, cujo significado em
hebraico é lírio, casada com Joaquim, homem rico e poderoso, tem o
costume de banhar-se no pomar quando o marido sai de casa. E o faz
habitualmente acompanhada de duas criadas, que entretanto dispensa
naquele dia. Dois voyeurs, já anciães, a surpreendem e exigem troca de
favores sexuais, do contrário dirão ao esposo que ela estava em atos
libidinosos com um jovem.
Ela
é denunciada ao marido por recusar a bandalheira e está prestes a ser
condenada ao apedrejamento quando um rapaz grita que é preciso conferir
se os velhos falam a verdade, pois a mulher pode ser inocente.
Separados,
os dois chantagistas têm de responder sob qual árvore Suzana estava com
o suposto amante. Um responde que é uma árvore pequena. Outro que é um
enorme carvalho. No texto grego, são feitos trocadilhos entre os étimos
de lentisco e de carvalho com os verbos cortar e serrar.
Este
episódio foi utilizado por apologistas para ilustrar o provérbio “quem
cala consente” (silentium videtur confessio). Entretanto, ao correr dos
séculos, o seu contrário prevaleceu, uma vez que o silêncio de Suzana
foi interpretado também como eloquente, por desdenhar e fazer muxoxo da
calúnia.
Convém
ler ou reler e refletir sobre a sabedoria contida no frasco proverbial.
Suzana diz em alta voz, depois de ser condenada à morte: “Deus sabe que
esses dois estão mentindo e que eu sou inocente”. O jovem Daniel
revolta-se com o que pressente ser uma injustiça e pergunta aos juízes:
“Vocês estão loucos? Vão condenar sem fazer pergunta nenhuma aos
acusadores?”. Então, ele é convidado pelos juízes a sentar-se com eles:
“Vem pra cá, Deus te deu o privilégio da velhice!” O resultado é que
enfim o Bem vence o Mal, e os dois chantagistas são punidos.
Quando
a atual pandemia passar, saberemos de muito mais coisas, entre as quais
o que pintavam e escreviam artistas e autores recolhidos como se fossem
todos mônadas de Leibniz.
Enquanto
isso, esperemos que, à semelhança dos caluniadores da casta Susana, os
detratores da honra alheia, tão atuantes nesta pandemia, também sejam
julgados e recebam o castigo prescrito de acordo com as leis. Afinal, o
que se fez na recente CPI da Pandemia não poderia sequer ser considerada
atividade legislativa, quanto mais de justiça.
Deonísio
da Silva é professor e escritor. Colunista da Revista Oeste, sua obra é
publicada no Brasil e em Portugal pelo Grupo Editorial Almedina
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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