Guerras culturais assolam a política, a academia, a mídia, a psicologia, a família. Luiz Felipe Pondé via FSP:
Nossa espécie viveu na imobilidade por milhares de anos ao longo da sua lenta evolução. Essa imobilidade histórica,
social e política, desenhou uma vida psicológica que lhe era simétrica.
A repetição de formas sociais de modo infinito ao longo do tempo
garantia a continuidade de hábitos que serviam como parâmetros
inconscientes da existência.
O
certo e o errado, seja lá o que isso seja, a vida após a morte, seja lá
como for, o significado dos sonhos e dos desejos sexuais, as formas
sociais de organização desses desejos, deuses e deusas a serviço de
nossa sanha por significados que cobrissem, como uma manta de luz, a
escuridão dos nossos sentidos para além da banalidade da física do
mundo, tudo isso junto é o que sempre fomos sem saber exatamente o que
éramos.
A
imobilidade do mundo social mantinha esse processo sem mudanças.
Acabamos por viver de modo inercial, sem saber o que fazíamos, incluindo
aí a desconhecida psicologia ancestral.
De repente, tudo isso acabou num transtorno conhecido como modernidade.
O movimento, as rupturas, cantadas em prosa e verso pela arte, pela
literatura, pela filosofia, pelas ciências, pelos manifestos futuristas,
se fizeram cotidiano.
O
determinismo social, até então cego, passou à luz do dia, e decidimos
que nós teríamos ciência o bastante para conduzir um processo gigantesco
do qual até ontem nem tínhamos conhecimento da existência.
Do
que se trata, afinal, essa descrição? Trata-se do livro "100 Years of
Identity Crisis, Culture Wars over Socialisation", recém-lançado pelo
sociólogo Frank Furedi (De Gruyter, uma editora alemã fundada em 1749).
Furedi permanece sem tradução no Brasil, talvez por não ser conservador
para os conservadores e não ser progressista para os progressistas. Essa
divisão idiota que continua destruindo o pensamento público. A inteligência sob a bota da política partidária.
Furedi
pergunta: de onde vieram a crise de identidade e as guerras culturais
que dominam o espaço público? Não vou dar spoiler, mas apontarei como, a
partir do cenário descrito acima, para o autor húngaro radicado no
Reino Unido, surgiu esse fenômeno, hoje hegemônico, que assola a
política, a universidade, a mídia, os psicoterapeutas e o que restou das
famílias.
Para
além do diagnóstico apontado nos primeiros parágrafos acima, importa ao
sociólogo a causa imediata do surgimento da adolescência como objeto da
psicologia.
Sabe-se da importância de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778),
com o seu livro "Emílio" nessa invenção do jovem. Mas fomos muito mais
longe do que imaginava nosso passeador solitário. O ponto de partida
para Furedi é a desorientação que se abateu sobre os pais, ou as
gerações mais velhas, como decorrência} do processo acima descrito.
Ninguém
mais sabe o que fazer com os jovens. E por quê? Porque ninguém nunca
soube. Ninguém "formava" ninguém, a imobilidade da repetição infinita
—paradoxo proposital— das formas sociais conduzia um processo em que a
própria imobilidade repetida se constituía em cegueira.
Nessa
ruptura, as ciências e a psicologia chamaram para si a capacidade —que
nunca tivemos a rigor— de dizer como se formam jovens saudáveis. E aí, o
caldo entornou tornou porque, como são campos de conhecimento que
surgiram dessa mesma ruptura e aceleração da vida social, as ciências
dos adolescentes são neófitas e não têm tempo suficiente para constituir
nenhum saber de fato. Sem a máquina institucional acadêmica, qualquer
um perceberia a ignorância de fundo dessas ciências.
O desespero dos pais
—identificados como ultrapassados—, os interesses de mercado dessas
próprias profissões, a desorganização crescente da imobilidade social e
histórica, que mantinha a vida como sempre foi, se somam para criar o
terreno do embate acerca de quem tem a última palavra sobre como deve
ser um adolescente.
A
parafernália ideológica tomou de assalto a ignorância que se diz
conhecimento, submetendo a psicologia à bota político-partidária
referida acima. Na verdade, ninguém sabe o que está fazendo com os
adolescentes. Estamos no escuro.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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