Novo estudo mostra que mudanças provocadas pela evolução continuam acontecendo na espécie humana. Eli Vieira para a Gazeta do Povo:
Nove
em dez características humanas foram submetidas à evolução pela seleção
natural nos últimos dois mil anos. Esse tipo de evolução, focada na
sobrevivência e na reprodução, gerou como subprodutos acidentais o
câncer de pele, a síndrome do intestino irritável, o transtorno de
déficit de atenção e a anorexia nervosa. São as descobertas de um grande
estudo publicado na revista Nature Human Behaviour na semana passada.
Weichen
Song e os outros autores do estudo, do Centro de Saúde Mental de Xangai
selecionaram 870 características complexas humanas cujas causas
genéticas foram estudadas em todo o material genético (genoma). Na
genética, características complexas são aquelas que têm a participação
de muitos genes, cada um com um pequeno efeito sobre o desenvolvimento,
mas que também são maleáveis à influência do ambiente. A altura é uma
dessas características, assim como todo comportamento que tenha base
genética.
As
características foram estudadas em diferentes escalas de tempo: o
presente, a história recente (dois a três mil anos), o período Neolítico
(a fase final da Idade da Pedra, englobando os últimos 10 mil anos) e o
tempo desde que a espécie humana surgiu (cerca de 200 mil anos).
A
esquizofrenia e o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade
(TDAH) foram associadas a um número maior de parceiros sexuais. Porém, o
risco genético de ter alguma das características complexas que são
transtornos não foi associado a um maior número de filhos.
Os
pesquisadores também consideraram diferenças entre os sexos.
Características como o índice de massa corporal, altura e facilidade de
bronzear a pele têm um impacto maior no número de filhos dos homens do
que das mulheres. Mais notório é que a alta inteligência reduz a
fertilidade das mulheres, mas aumenta o seu número de parceiros sexuais.
Adaptações na história recente
A
seleção natural é a sobrevivência de características que em determinado
ambiente ajudam o organismo a continuar vivo e produzir filhos,
enquanto ficam cada vez mais raras ou somem as características que
atrapalham. O processo leva necessariamente à adaptação. Os cientistas
chineses descobriram que 88% das características estudadas têm sinais de
serem adaptações reforçadas pela seleção nos últimos dois milênios.
Importante notar que a genética da maioria delas é baseada no UK
Biobank, um banco de dados que contém o genoma de 200 mil pessoas do
Reino Unido, então os resultados se aplicam principalmente a essa
população.
A
facilidade de bronzear a pele é uma das adaptações com marcas mais
fortes de seleção natural nas últimas 100 gerações (2.800 anos). Outras
são o comportamento de consumir vegetais crus, o alcoolismo e a altura
quando se está sentado. Já características neurológicas como as
estruturas cerebrais apresentaram pouco sinal de seleção natural no
período, o que é plausível, pois o ser humano pouco mudou em sua
natureza comportamental neste período.
Com
seus métodos, os pesquisadores também puderam avaliar contra quais
características a seleção natural atuou. O colesterol alto teve o maior
sinal negativo, o que indica que afetou bastante as chances de seus
portadores de sobreviver e ter filhos. Surpreendentemente, algumas
doenças tiveram um sinal positivo de seleção, o que significa que elas
acompanham outras características que a seleção natural favorece. É o
caso de câncer de pele, síndrome do intestino irritável, TDAH e anorexia
nervosa. O que elas acompanhariam, para serem favorecidas? A anorexia
nervosa pode acompanhar comportamento de busca por comida alterado pela
ameaça da fome. O intestino irritável pode acompanhar uma atividade de
defesa do sistema imunológico mais forte contra os germes, o que era uma
adaptação em tempos de vida pouco higiênica, e não nos atrapalha o
suficiente hoje para ser eliminada.
Dez mil anos antes de Cristo
No
período neolítico a humanidade desenvolveu a agricultura, domesticou
animais, e isso está escrito nos nossos genes. A cultura, junto ao
ambiente físico, atuou também como seleção natural sobre as nossas
mutações e variantes genéticas. Há sinais de que evoluímos para digerir o
amido com mais facilidade, e, naquelas sociedades com consumo de leite,
os adultos que retiveram a capacidade de digerir a lactose tiveram
vantagem: antes, a intolerância à lactose era a regra.
No
estudo de Song e colegas, utilizaram informações genéticas coletadas de
corpos preservados nos últimos dez mil anos para comparar com o genoma
humano de hoje. Mais uma vez, as mudanças na capacidade da pele de se
bronzear e nas características relacionadas à nutrição foram as que mais
tiveram marcas de mudança direcionada por seleção. Os autores puderam
mostrar que a mudança na facilidade de bronzeado estava diretamente
relacionada à latitude em que os ancestrais viviam, e que, de fato, o
advento do Neolítico mostra que a seleção natural mudou de pauta:
características antes do período relacionadas à caça e coleta eram
favorecidas, e depois características relacionadas à vida agrícola
passaram a ser favorecidas.
Também
houve o favorecimento de doenças que acompanham outras características:
doença de Crohn (inflamação crônica intestinal), dermatite atópica
(pele seca com coceira), periodontite (inflamação na gengiva, ligamentos
e ossos ao redor dos dentes) e fraturas.
Quanto
ao período desde o nascimento da humanidade nas últimas centenas de
milhares de anos, os pesquisadores indicam que a seleção natural deu
atenção à massa de água no corpo, inteligência, menor chance de derrame
cerebral, memória e esquizofrenia. Certamente relacionadas ao nosso
cérebro mais avantajado e nossa habilidade singular de usar água do suor
para refrescar o corpo durante esforço físico.
Continuamos a evoluir
O
estudo confirmou que a intensidade da seleção natural atuando sobre nós
mudou dramaticamente nos últimos milênios. Mas isso não significa que
paramos de evoluir. Evolução, em biologia, significa mudança nas
características das populações ao longo do tempo. É possível evoluir de
uma forma neutra quanto à sobrevivência e a reprodução, ou pela seleção
natural, que é na direção de mantê-las ou aperfeiçoá-las. A nossa era
pós-industrial apresenta ambientes diferentes daqueles em que viveram
nossos ancestrais caçadores-coletores, pastores e agricultores. Hoje, a
maioria de nós não trabalha mais no campo. Nos próximos milênios, nossos
genomas contarão outra história.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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