BLOG ORLANDO TAMBOSI
A crise nas cadeias de abastecimento é golpe na globalização? Vilma Gryzinski para a edição impressa de Veja:
Em
abril de 1956, um cargueiro zarpou de Nova Jersey para Houston levando
uma novidade: “caixas” de aço corten de tamanho padronizado que podiam
ser transferidas diretamente para carrocerias de caminhões especialmente
adaptadas para transportá-las. Chamavam-se contêineres e tinham sido
inventadas por Malcom McLean, um empreendedor que havia começado no ramo
dos transportes como menino paupérrimo do interiorzão da Carolina do
Norte, trabalhando com um caminhão de segunda mão. As humildes “caixas”
mudariam o mundo. Ao racionalizar e baratear os custos do transporte
marítimo, elas confluíram para transformações muito mais celebradas,
como a revolução digital, a transformação da China em economia de
mercado e a entronização do capitalismo e do livre fluxo de mercadorias
como sistemas consensuais. O conjunto dessas mudanças foi chamado de
globalização.
Levantar
de manhã e tomar um café com cápsula feita na Suíça — um país que não
produz um único pé de arábica —, teclar num celular fabricado em
Zhengzhou e pegar um carro alimentado a chips semicondutores vindos de
Taiwan são atos que a globalização normalizou. E os contêineres
viabilizaram, em escala estonteante. O maior navio cargueiro do mundo
tem capacidade de levar 23 992 contêineres. Cabem neles 145 milhões de
pares de tênis. Tão revolucionárias quanto as ânforas para o transporte
de vinhos e azeites disseminadas pelos fenícios, as caixonas de
transporte inauguraram problemas que se tornaram clássicos da
globalização. A começar pela redundância dos estivadores, uma categoria
altamente sindicalizada e boa de briga, características que não
impediram seu drástico encolhimento. Das fábricas de calçados gaúchas às
siderúrgicas de Detroit, a transferência da produção para a China
provocou o mesmo efeito exterminador nos empregos. A promessa da
economia globalizada era que os postos de trabalho sugados “aqui” — no
setor manufatureiro — ressurgiriam “ali” — na indústria de serviços e de
tecnologia avançada. Nem sempre foi uma promessa cumprida, redundando
em rebeliões eleitorais como a vitória de Donald Trump e do Brexit, mas a
economia globalizada tirou 1,1 bilhão de pessoas da pobreza e barateou o
custo de vida de outros bilhões.
É
todo esse processo de escala planetária que hoje está estremecido. A
Covid-19 assustou mesmo os governos mais liberais, ao fazê-los descobrir
que os suprimentos médicos, de máscaras a substâncias para a fabricação
de vacinas, dependiam totalmente da China. E o pós-Covid está
provocando outra constatação: não adianta ter tudo mais barato, de
brinquedos a autopeças, se as mercadorias trazidas do outro lado do
mundo ficam empilhadas nos portos, sem caminhoneiros suficientes para
esvaziar os contêineres. Pode ser apenas um susto passageiro, um soluço
num mundo ainda sob os efeitos traumáticos da pandemia. Pode ser uma
nova fase que exija adaptações como mais espaços para armazenagem — e,
portanto, custos maiores. Pode ser que o mundo encolhido pela
globalização esteja ficando menos pequeno de novo.
Publicado em VEJA de 27 de outubro de 2021, edição nº 2761
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