No dia 29 de setembro o Twitter amanheceu com os lacradores dando chiliques contra Leandro Narloch. Imagine que uma barata voadora apareceu num salão de beleza. A dinâmica do Twitter no trato de questões intelectuais é a mesma, trocando-se o dissidente pela barata. Bruna Frascolla via Gazeta do Povo:
Embora
seja usado por todo tipo de gente, o Twitter é uma casinha confortável
apenas para um tipo de gente: o lacrador. O lacrador fala o que quer e,
quando ouve o que não quer, chama o tio Jack Dorsey para punir o feio e
bobo que lhe disse coisas desagradáveis. Os não-lacradores pisamos em
ovos para driblar censura; os lacradores se refestelam como se
estivessem no sofá favorito e reclamam da liberdade dos outros.
Por
isso, o Twitter é um bom lugar para nos inteirarmos da bolha lacradora.
Há quem confunda o Twitter com a população geral. Faz isto quem é
lacrador ou vive em ambiente cheio de lacradores. Neste último caso, o
Twitter faz mal e abala o senso de realidade. E creio que isso ajude a
explicar o fenômeno de jornais tradicionais e o ambiente acadêmico irem
se tornando indiscerníveis do parquinho virtual de Jack Dorsey.
Essa
indiscernibilidade se fez visível esta semana, no dia 29 de setembro,
quando o Twitter amanheceu com os lacradores dando chiliques contra
Leandro Narloch. Imagine que uma barata voadora apareceu num salão de
beleza. A dinâmica do Twitter no trato de questões intelectuais é a
mesma, trocando-se o dissidente pela barata.
Primeiro
há disseminação de pânico voltada contra uma pessoa: em vez de “Oh meu
deus, uma barata!”, temos “Oh meu Deus, um racista!”. Depois há a
pressão para que alguma autoridade faça a pessoa desaparecer — a
famigerada campanha de cancelamento. Por fim, o fulano desaparece do
ambiente, tipo Trump, pego pelas anteninhas por Jack Dorsey e jogado
pela janela.
O
que Narloch disse lá na Folha de São Paulo não vinha ao caso. O que
importava era que a autoridade responsável o demitisse já. E a
autoridade dessa vez já não era o tio Jack, mas sim a Folha de S. Paulo.
Mas o que ele disse?
Narloch
disse que Risério lançara um excelente livro com o título “As Sinhás
Pretas da Bahia: Suas escravas, suas joias” (Topbooks, 2021), sobre a
elite escravocrata preta que floresceu na Bahia após acumular riqueza,
comprar a própria liberdade e se tornar proprietária de joias e
escravos. Risério, da esquerda contracultural, é um notório crítico da
esquerda progressista. Narloch, notório liberal desde a época em que
isso era xingamento, aspeia e subscreve a conclusão antiprogressista do
antropólogo: “A teoria crítica racial, em voga hoje nas faculdades de
humanas, enxerga o mundo pela lente das relações coletivas de poder.
Nessa visão, houve na história uma divisão nítida entre opressores e
oprimidos, nitidez que persistiria hoje. No entanto, como diz Risério,
na história da Bahia ‘esse dualismo esquemático não encontra
correspondência factual’.” Quem tiver um problema com isso, mostre que
as pretas do livro não existiram. Trata-se de fato.
O
recém-falecido historiador Manolo Florentino, da UFRJ, assinou o
prefácio ao livro e também foi lembrado por Narloch: “O costume de
tratar negros somente na voz passiva (‘escravizados, humilhados,
exterminados’) acaba por menosprezar o protagonismo deles na história do
Brasil. Como observou certa vez o historiador Manolo Florentino (que
assina a apresentação do livro de Risério), é muito mais estimulante,
para negros de hoje, imaginar que seus antepassados foram em alguma
medida protagonistas de seu destino.”
Manolo
Florentino, junto com os antropólogos Peter Fry e Yvonne Maggie, eram,
dentro da UFRJ, notórios opositores das classificação dos brasileiros
por raça. Escreveram juntos o livro “Divisões Perigosas”, uma coleção de
artigos contra as cotas raciais. Como o clima era outro, Lilia Moritz
Scwarcz chegou a assinar um abaixo-assinado contra as cotas raciais.
Manolo Florentino se manteve firme, porém.
Narloch
nem sequer teve a pretensão de originalidade no texto dele. No entanto,
Narloch era uma barata solitária voando livremente no território dos
lacradores. Tudo bem Risério escrever livros, desde que ninguém os leia.
Tudo bem Manolo Florentino, Peter Fry, Yvonne Maggie terem se oposto às
cotas raciais, desde que ninguém lembre. Para lacrador só existe o aqui
e o agora. Por isso o único problema é as autoridades não terem dado um
sumiço em Narloch.
“Demite ele, Folha!!”
O
leitor da Folha teve a satisfação de saber tintim por tintim a cor, o
“gênero” e a orientação sexual dos membros do conselho editorial do
jornal. Um dos novos conselheiros, que anda com os crachás de “negro” e
de “gay”, comemorou a própria escolha para esse conselho tão “diverso”.
“Quando criado, há 43 anos, o conselho era formado por nove homens
brancos”, diz o jornal, atingindo o pináculo da impertinência.
Assim,
recém empoderado, o conselheiro negro-gay Thiago Amparo teve o seu
perfil no Twitter convertido em muro de lamentações de gente que queria a
cabeça de Leandro Narloch. Um acadêmico de comunicação comenta: “Alô
Sleeping Giants talvez seja hora de começar a pressionar os anunciantes
da Folha”. De tochas na mão, um professor com o qual tive aulas na UFBa
conclama: “O texto merece um desligamento sumário do jornalista, isso
sim. E um pedido de desculpas da folha. Espero que o conselho da folha
se pronuncie, Thiago, e não apenas você. Tudo tem limite.”
A
bolha Twitter-Folha transbordou para a academia e eu recebi primeiro
pelo zap-zap a manifestação de Risério, que não tem zap-zap, nem
Twitter, nem Instagram, mas já mencionava do comentário feito por “Lilia
Beyoncé Schwarcz” no Instagram. Eu também não tenho Instagram, e ainda
assim acabei recebendo pelo zap-zap um print do texto dela contra a
coluna de Narloch.
“Buááááá”
Até
o presente momento, a cabeça de Narloch está sobre o seu pescoço.
Desempoderado, o conselheiro Thiago Amparo tomou duas providências. A
primeira foi tuitar: “Passei o dia todo mal. Ânsia de vômito. Mãos
tremendo. Tristeza. Falta de acolhida fora e dentro do Twitter. Vou
desligar um pouco.” O que ele quer com isso? Incitar o máximo de pessoas
a se manifestar a seu favor, para em seguida mostrar sua coleção de
likes ilustres para alguém mais importante do que ele na Folha.
A
segunda providência foi fazer uma coluna-chilique clamando pela cabeça
de Narloch. “Ao terminar de ler o texto,” diz o coitadinho, “eu senti
ânsia de vômito, literalmente; um misto de repugnância e desânimo. […]
Folha, por que ainda precisamos nos masturbar coletivamente com a
relativização da dor preta?” A criatura chega a acusar Narloch de
“legitimar a escravidão”. Termina dizendo que “O que está em jogo é se a
pluralidade que este jornal preza inclui racismo. Jornais são
documentos históricos: eu me reservo a dignidade derradeira de dizer com
todas as letras que a coluna de Leandro Narloch é racista; que
publicá-la faz do jornal conivente; e que em algum momento a corda do
pluralismo esticou a tal ponto que nos enforcará.”
E
de resto? Seguiram-se artigos na Folha falando sobre como Narloch é mau
como um pica-pau, devidamente retuitados pelo desamparado Amparo. E só.
Ao que parece, Narloch fica, por mais que o conselheiro lacrador e sua
claque queiram que ele saia.
Mas quem consegue as coisas usando a cor da pele e dando carteirada de vítima não pode esperar ser respeitado, não é mesmo?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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