A odisseia de uma família afegã para escapar da volta do Talibã ao poder. Andre Lihon para a revista Oeste:
Foram
24 horas em que a vida havia perdido todo o sentido. Exatos 25 dias
depois de deixarem sua casa no Afeganistão, Omeid e Marwe estavam num
país estranho, sujos e famintos, com três filhos dopados para suportar a
jornada. Cercados por ovelhas barulhentas, encolhidos pelo medo,
despejados por traficantes sobre o feno que cheirava a urina e fezes de
animais. A cada segundo, desaparecia a esperança que os havia feito
suportar todo o cansaço e o desconforto da jornada até ali. E um dos
filhos havia desaparecido.
Omeid
Soleimani Zaida e Marwe Soleimani Zaida ainda eram crianças quando o
Talibã tomou o país, em 1996. Aos 7 e 8 anos de idade, não se lembram
com clareza da guerra civil vencida pelos extremistas islâmicos. Daquela
época, Omeid recorda de que não gostava de se vestir como aqueles
homens que haviam tomado o poder. “Mas meu pai me forçava a isso”,
conta. “Ou então, ele dizia, todos seríamos castigados.”
Omeid
e Marwe se conheceram na escola em 2005, quatro anos depois de o Talibã
ser expulso pelas forças ocidentais lideradas pelos EUA. O partir daí, o
sistema educacional afegão tentou romper com o passado de opressão e
ignorância. O novo governo havia banido a segregação de sexos, que
impedia meninas de terem acesso à educação formal. Foi quando se
apaixonaram. Casaram-se um ano depois, quando ela, aos 17 anos de idade,
completou o último ano na escola. Omeid, com 18, havia começado a
trabalhar na parte administrativa do sistema de polícia da cidade de
Cabul. Seus pais os ajudaram a comprar o terreno onde construíram uma
casa. Três anos mais tarde, o casal já tinha dois filhos.
Mesmo
depois da queda do Talibã, com o surgimento de novas escolas e
hospitais, e da instalação de luz elétrica, Cabul, a capital em que
ambos nasceram, nunca chegou a ser um lugar tranquilo. A população temia
e duvidava do governo, ao mesmo tempo em que dependia dele. “Fico feliz
que minha esposa tenha podido terminar seus estudos”, disse Omeid. “Com
isso, minha filha entendeu que também poderia estudar, mesmo que muitos
homens ainda fossem contra.” Com o passar dos anos, a insegurança
aumentou. Os ataques terroristas ficaram mais frequentes e letais. A
inflação se instalou na economia e o governo se mostrou incapaz de
defender a população. Foi em meio a tudo isso que Fazlullah nasceu. Sama
chegou logo depois. Omeid passou a trabalhar para o Ministério de
Assuntos Internos. Era chefe da seção responsável por informatizar o
sistema de identificação dos afegãos.
Em
2014, Ashraf Ghani assumiu a Presidência. Foi a primeira transição
democrática da história do Afeganistão. Sua chegada deveria marcar o
amadurecimento do processo de democratização do país. No entanto, apenas
dois anos depois, os americanos decidiram mudar o curso de sua
política, o que teria grande impacto no futuro do Afeganistão. Ao ser
eleito, Donald Trump prometeu que retiraria as tropas de lá. “Chegou a
hora de, depois de todos esses anos, trazer nosso povo de volta para
casa”, afirmou. Contrariando a política americana de não negociar com
grupos terroristas, seu governo passou a tratar da retirada diretamente
com o Talibã, enfraquecendo e isolando ainda mais o governo de Ashraf Ghani.
A hora de partir
Agora
com quatro filhos e prevendo o evidente colapso do governo eleito,
Omeid e Marwe decidiram que a vida de nenhum deles estaria segura com a
volta do grupo terrorista ao poder. Com os US$ 10.000 que conseguiram
economizar, partiram rumo ao Paquistão. Um motorista os levaria até a
fronteira. Omeid temia que o mesmo sistema de identificação que estava
ajudando a implementar pudesse ser usado pelo Talibã como justificativa
para sua família ser castigada.
A
passagem pelo Paquistão foi rápida. O objetivo era evitar viajar por
áreas já controladas pelo Talibã, que havia expulsado as tropas do
governo ao redor da fronteira com o Irã. Ainda no Paquistão, conseguiram
o contato de outro contrabandista, que prometeu levá-los até a
fronteira entre o Irã e a Turquia. Preço: US$ 1.500 por cada membro da
família, com exceção dos pequenos, Fazlullah e Sama.
Caminho percorrido por Omeid, Marwe e os filhos, do Afeganistão até a Turquia |
A
viagem através do Irã era quase sempre feita à noite em vans e pequenos
caminhões cheios de outros afegãos, na sua maioria garotos bem mais
jovens que eles. Pessoas que nunca haviam vivido sob o controle do
Talibã. Os trajetos eram longos e muitas vezes eles precisavam esperar
dias escondidos em casas e galpões antes de seguir viagem. A alimentação
era pobre, e a falta de higiene dos lugares em que ficavam fez com que
Fazlullah e Sama adoecessem. As crianças choravam por cansaço, por fome e
pelas dores que sentiam.
Para
poupá-los do sofrimento e sem poderem oferecer alguma alternativa,
Omeid e Marwe começaram a sedar as crianças com soníferos oferecidos
pelos próprios contrabandistas. Algumas poucas gotas diluídas em água os
faziam dormir por quase todo o dia. Quando acordavam, eram novamente
sedados.
Os
últimos contrabandistas com quem viajaram eram jovens, mal-educados,
insensíveis com a condição dos filhos e apenas interessados em dinheiro.
Disseram que Omeid deveria pagar outros US$ 3.000. Deram uma surra nele
quando souberam que a família praticamente não tinha mais dinheiro.
Tomaram seu celular e algumas joias que Marwe havia ganho como presente
de casamento.
Quinze
dias depois de terem saído sua casa, a família foi deixada com outros
refugiados próximo à fronteira, com um aviso: soldados iranianos estavam
guardando a região. Por isso, eles não poderiam mais continuar viajando
pelas estradas oficiais. Deveriam caminhar apenas à noite, seguindo
pequenos rios que se formam entre as colinas. Se fossem pegos, seriam
deportados para o Afeganistão. Ao chegarem a uma vila chamada Balesur,
um novo contrabandista os ajudaria a atravessar para a Turquia.
Nenhum
integrante do grupo fazia ideia de como chegar à vila — e muito menos
de que seriam necessárias três noites de caminhada até lá. A temperatura
durante os dias causava vertigem. O vento das noites, calafrios e
febre. Fazlullah e Sama não entendiam o que estava acontecendo. Sedados,
choravam baixo. Ao chegarem a Balesur, foram levados para a casa de um
agricultor, que se sensibilizou com o estado das crianças, e puderam
enfim alimentar os filhos.
Apesar
da divisa entre o Irã e a Turquia, ambos os lados da fronteira estão
dentro do Curdistão — uma nação sem reconhecimento internacional
habitada por curdos. A região é controlada pelo Partido dos
Trabalhadores Curdos, ou PKK, uma organização armada anarquista
opositora aos governos iraniano e turco, que a consideram um grupo
terrorista. Simpatizantes do PKK são mais tolerantes com refugiados
afegãos e costumam oferecer a eles alimento, água e abrigo.
Nas
últimas semanas, a Turquia havia intensificado os trabalhos na
construção de uma grande barreira de 295 quilômetros, composta de três
obstáculos: um emaranhado de arame farpado, um fosso e um muro de
concreto modular de 4 metros de altura. Além dos obstáculos físicos, o
governo turco enviou 6.000 soldados para a fronteira com o Irã com a
tarefa de impedir a passagem de refugiados afegãos. Ao Exército,
somaram-se patrulhas da polícia Jandarma, uma unidade especial que atua
no combate a grupos paramilitares atuantes no país e que controlam a
saída de todas as vilas próximas à fronteira. Helicópteros vasculham os
pontos mais inacessíveis das montanhas. Embarcações vigiam o grande lago
da cidade de Van, considerada uma das rotas mais perigosas.
O arame farpado
Omeid
é um homem calmo. A fala serena é acompanhada por gestos discretos. Tem
uma grande tatuagem no braço esquerdo. A tatuagem, segundo ele, “não
significa nada, apenas uma lembrança de quando era jovem e assistia aos
jogos de futebol com jogadores cada vez mais tatuados”. Seus pais,
agricultores, tiveram uma grande família. Os três irmãos mais velhos
nasceram no interior. Ele e seu irmão mais novo (morto num atentado)
nasceram e cresceram na periferia de Cabul. Durante a viagem, seu maior
medo era não poder defender a família — o que ele sabia que, mais cedo
ou mais tarde, seria necessário. Esse momento parecia se aproximar com o
passo final da fuga.
Omeid,
Marwe e os filhos esperaram cinco ou seis dias na região de Balesur,
aldeia iraniana a poucos quilômetros da fronteira com a Turquia. Até que
foram avisados que todos deveriam estar prontos para a travessia
durante a madrugada. Soldados turcos posicionados em suas torres
observavam os carros e as pessoas se movendo lentamente a distância. No
inverno, as montanhas arenosas sem vegetação ficam cobertas por uma
grossa camada de neve. Durante a primavera, a neve derrete, criando
longos e estreitos vales por onde a água corre até o lago do lado turco.
É por entre esses rasgos glaciais que os refugiados afegãos costumam
chegar até a Turquia.
Mais
de 200 pessoas estavam prontas para cruzar a fronteira. Os dois filhos
maiores haviam sido encarregados de levar os poucos pertences da
família. Omeid e Marwe levariam nos braços os dois filhos pequenos,
novamente adormecidos pelo sonífero. Os refugiados foram divididos em
grupos, transportados e distribuídos em diversos pontos da fronteira. O
objetivo era sobrecarregar os soldados turcos para que falhassem em sua
vigilância. E ao mesmo tempo garantir que o maior número possível de
pessoas pudesse chegar ao outro lado, onde novos contrabandistas
estariam esperando.
Ao
lado de dezenas de outros jovens afegãos, a família caminhou por cerca
de duas exaustivas horas acompanhando o fluxo contrário de um pequeno
córrego. Subiram a montanha até chegar a um ponto da fronteira onde o
muro ainda não havia sido erguido. Ali, teriam de atravessar apenas o
arame farpado e uma fossa.
O
arame farpado é uma malha de tiras de metal com arestas em formato de
borboletas com “asas” agudas e cortantes. Sua função é impedir a
passagem de humanos. Distribuído em linhas longas e embaraçadas, é
projetado para infligir cortes graves em quem tentar passar por ele.
Omeid passou, as crianças mais velhas também. Quando Marwe já tinha
praticamente ultrapassado o arame farpado, com o pequeno Fazlullah nos
braços, enroscou seu tênis numa dessas lâminas. Sua calça se rasgou.
Assustada, mas obviamente aliviada, Marwe começou a correr, mesmo
descalça. Os espinhos e as pedras feriram seus pés. Exausta, ela teve
dificuldades para acompanhar o grupo. Foi ficando para trás.
Marwe
se viu com o filho pequeno num penhasco, já do lado turco. Não
conseguia ver seu marido com os outros três filhos. Foi ficando cada vez
mais difícil caminhar. Marwe pediu ajuda para um jovem refugiado. O
estranho pegou Fazlullah adormecido no colo e continuou seu caminho sem a
esperar. Ela continuou caminhando sozinha até reencontrar o marido, que
chorava em desespero.
O sumiço de Fazlullah
Ansiosa,
Marwe começou a procurar pelo rapaz que a havia ajudado. Logo entendeu
que nem o jovem, nem o pequeno Fazlullah estavam ali. Chorando, pediu a
todos do grupo que a ajudassem a encontrar o filho. Mas os refugiados
não podiam parar. Caminharam até pouco antes do amanhecer, quando foram
encontrados pelos contrabandistas.
Eram
quatro jovens turcos que não falavam persa ou dari. Apenas os
orientavam com gestos e palavras que não conseguiam compreender. Subiram
rapidamente na carroceria de um caminhão, que seria coberta com uma
lona de plástico. Omeid se recusou a subir. Tentou explicar que os
contrabandistas precisavam ajudá-lo a encontrar o filho. Com a
dificuldade de comunicação, seu pedido se transformou numa grave
discussão. Os jovens espancaram Omeid, que precisou se arrastar para não
ser abandonado sem sua família.
Enquanto
isso, poucos quilômetros adiante, o pequeno Fazlullah acordou entre
estranhos. Não sabia onde estava, nem reconhecia as pessoas ao seu lado.
Sentindo-se abandonado, começou a chorar. Seu choro era incontrolável,
incessante. Fazlullah não podia imaginar, mas seus pais continuavam
procurando desesperadamente por ele. Omeid e Marwe foram mantidos
escondidos até o anoitecer, quando seria seguro para que os
contrabandistas os reunissem novamente. Depois de 24 horas de desespero,
desde que a família havia sido separada, um jovem apareceu com o
pequeno Fazlullah nos braços. Quase por milagre, a família foi reunida.
Mas, para Marwe, o sentimento de culpa permanece ainda hoje. “Poderíamos
nunca mais encontrá-lo. Se não o víssemos mais, a culpa seria minha.”
Marwe
tem um rosto amistoso. Cachos do cabelo denso e escuro escapam do véu,
emoldurando com delicadeza seus olhos ágeis. Sua voz é baixa. Sentada ao
lado do marido, ela observa as duas crianças que brincam sobre um
lençol estendido no piso do apartamento em que estão escondidos.
Omeid, Marwe e dois de seus quatro filhos |
A
filha Sama é a mais energética e se joga com confiança sobre o irmão
Fazlullah. Os puxões de cabelo, os choques entre os corpos, as mordidas e
as provocações parecem não afetar a paciência de Fazlullah com a irmã
mais nova. “Desde que voltou, ele está assim. Parece calmo, mas não
está”, disse Marwe. “À noite, chora. Quando não estamos por perto,
também chora. Desde que o reencontramos, ele ainda não disse uma única
palavra. Perdeu a fala.”
Andre Liohn é fotojornalista e autor do livro Correspondente de Guerra
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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