Como podemos expressar ideias universais presentes nos indivíduos sem a noção clássica de Homem? Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Em
abstrato, igualdade não quer dizer muita coisa quando aplicada aos
homens. Na tradição liberal, igualdade remete às leis: nobre ou plebeu,
rico ou pobre, gozar dos mesmos direitos elementares. Essa concepção de
igualdade provavelmente vem do cristianismo, segundo o qual todos os
homens — o ladrão, o médico, o estuprador, o professor — são feitos à
imagem e semelhança de Deus. Isso torna os homens igualmente dignos num
nível elementar. Após a II Guerra, esse sentimento de igualdade de
dignidade foi laicizado na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Que
hoje sejamos treinados para ouvir “igualdade” e pensar em dinheiro é
preocupante. Nem o genocídio dos judeus europeus, que tinham dinheiro
para levar uma vida de classe média antes de perder os direitos e a
dignidade, foi capaz de ensinar o quão mesquinha é essa concepção de
igualdade.
Igualdade como uniformidade
Os
que clamam por igualdade pensando em dinheiro têm em vista a
uniformidade das riquezas. Uma outra uniformidade pela qual se clama é a
uniformidade de pensamento. Em nosso tempo, esta é uma demanda premente
da parte dos progressistas: reparemos que, de acordo com a propaganda,
algo tão subjetivo quanto um sentimento — o ódio — é letal em si mesmo.
Nunca se empreendeu, na história ocidental, o projeto de extirpar um
sentimento da humanidade. Ao contrário, sempre lidamos com a ideia de
continência e cultivo pessoal: as tendências existem, os sentimentos
existem, mas os homens são falíveis. Humo sum, humani nihil a me alienum
puto: “Sou um homem, não acho que nada de humano seja alheio a mim.”
Este é o mote clássico. Hoje, é difícil encontrar quem tenha a humildade
de dizer em público que sente ódio, pois é um mero homem, um mortal
aquém de seres divinos.
Então
hoje vivemos numa época em que é normal alguns criminalizarem um
sentimento humano, imputando-o somente a outros. Fica tácito que eles,
os progressistas, não odeiam ninguém. Não carregam essa mácula que
outrora se supunha tingir toda a humanidade.
E
com a campanha educativa contra o ódio pretendem acabar com a
criminalidade. Todo homicídio pode ser explicado através de algum
preconceito. O preconceito, a seu turno, é fomentado pelo discurso de
ódio. Uma piada pode ser enquadrada como discurso de ódio. Resultado:
piadas matam. Para acabar com homicídios não é mais necessário
fortalecer a polícia, mas sim a doutrinação que os cidadãos recebem a
fim de não sentirem mais ódio. Tem aquele bordão feminista que manda
ensinar os homens a não estuprarem — seria um bordão, se não pretendesse
com isso substituir a ação policial e a prevenção da parte da mulher.
Parece que, se os homens forem suficientemente doutrinados, aí, e só aí,
o estupro será combatido.
A uniformidade do pensamento nos está sendo apresentada como essencial à vida em sociedade.
O
caso da criminalidade é batido há anos. Mas agora vemos também a mesma
concepção se transpor para a ciência: discordâncias acerca da maneira
como a pandemia está sendo gerida devem ser tachada de fake news, e fake
news deve ser crime. Se discordâncias forem expostas por uma pessoa, a
sociedade inteira corre o risco de virar antivacina terraplanista. Assim
como as feministas diziam que uma piada mata, os famigerados
especialistas hoje dizem que fake news matam.
O
curioso é que terraplanistas existem há um bom tempo, inclusive
associados ao movimento antivacina. Entendia-se, até pouco tempo atrás,
que desinformação se combate com informação. Nem todos os terraplanistas
são passíveis de serem dissuadidos, mas não se trabalhava com a
necessidade de uniformizar totalmente o pensamento de cada indivíduo na
sociedade. Trabalhávamos, em vez disso, apenas com a formação de
consensos e com a noção de maioria. A maioria era mais poderosa, mas os
direitos das minorias deveriam ser respeitados. Bastava que os
terraplanistas fossem minoria, e tudo estava certo. A sociedade não ia
desmoronar por causa deles.
Hoje,
não. O a própria ideia de direito de minoria foi esvaziada e virou
lacração. Se você, ou um cientista renomado, ou um doidinho, expressarem
ceticismo quanto à vacinação de covid, tudo se passa como se a dúvida
fosse contagiosa e as pessoas fossem todas morrer por causa disso,
deixando de tomar a vacina salvadora.
Molda-se uma sociedade que não aceita senão a uniformidade do pensamento.
Gênero humano
Existe
outra razão para ser difícil encontrar quem proclame: Humo sum, humani
nihil a me alienum puto. A razão é que está difícil dizer-se homem e ser
entendido.
Com
cirurgias linguísticas, a ideia de ser um homem vem se tornando cada
vez mais embotada. Em latim, homo vale para homem e para mulher; o homem
do sexo masculino era o vir, que veio a dar em varão em português. Em
grego também havia um substantivo humano, ἄνθρωπος (anthropos), para
designar o homem sem especificar o sexo. As palavras em português
derivadas do grego que têm a ver com a humanidade têm ánthropos na
composição: antropologia, antropocentrismo, filantropia… As palavras
relativas ao homem do sexo masculino usam “andrós”, o genitivo de ἁνήρ
(anér): misandria, poliandria, andrógino…
Em
um português transigente com ambiguidades, homem às vezes é entendido
como sinônimo de varão, e às vezes é entendido como espécime do gênero
humano.
Mas
quem disse que hoje podemos falar em gênero humano e ter a certeza de
ser entendidos? Martelam-nos que existe um espectro de gênero: gênero
masculino, gênero feminino, gênero neutro, gêneros não-binários. Por
causa disso inventaram “todes”, para abranger quem não se identifica nem
com homem, nem como mulher.
Se
cada indivíduo pode pertencer a um gênero diferente, e se “homem” é só
mais um gênero, como poderemos expressar a ideia clássica de Homem sem
cair em abstrações coletivistas?
Ora,
muito já se fez contra os homens em nome da Humanidade – muita coerção
da atual pandemia se faz em seu nome. Mas este é um problema num nível
mais elementar: como podemos expressar ideias universais presentes nos
indivíduos sem a noção clássica de Homem? As frases: “O Homem é
racional” e “A Humanidade é racional” são diferentes. A primeira é muito
mais clara. A segunda pode soar como “A Rússia é uma potência bélica”,
que não faz de nenhum russo, em particular, uma potência bélica. Além
disso, sacrificar russos para salvar a Rússia faz perfeito sentido. Que
espanto haverá, então, quando se propuser a eliminação de alguns milhões
de homens (chamados eufemisticamente de “população”) para salvar a
Humanidade?
blog ORLANDO TAMBOSI
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