Na verdade já nem é necessária qualquer virtude real, o que importa é a sua simulação e exposição espalhafatosa. Luciano Trigo para a Gazeta do Povo:
Houve
um tempo em que se ensinava que as boas ações devem ser praticadas em
segredo. “Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na frente dos
homens, só para serdes vistos por eles. Caso contrário, não recebereis a
recompensa do vosso Pai que está nos céus. Por isso, quando deres
esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas
sinagogas e nas ruas, para serem elogiados pelos homens. Ao contrário,
quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua
mão direita, de modo que, a tua esmola fique oculta”, disse Jesus, de
acordo com o Evangelho segundo São Mateus.
A
mensagem é que as boas ações não carecem de exposição: elas devem ser
praticadas no íntimo do coração, porque toda generosidade, quando é
autêntica e verdadeira, é também gratuita e desinteressada. Por isso
mesmo, dar publicidade da própria virtude, até não muito tempo atrás,
era visto com reserva, ou mesmo como algo moralmente censurável. Pegava
mal. Hoje em dia, desnecessário dizer, não é mais assim. Na verdade já
nem é necessária qualquer virtude real, o que importa é a sua simulação e
exposição espalhafatosa.
De
forma similar, a felicidade real foi substituída pela felicidade fake
das fotografias no Instagram, a rede social onde todo mundo é bonito e
feliz o tempo inteiro. Na semana passada vi alguém perguntar para um
amigo: “Mas e fora do Instagram, está tudo bem?” Parece que já passamos
mesmo da etapa em que existia uma vida real, inevitavelmente repleta de
dificuldades, desafios e problemas, e uma vida de vitrine. Hoje as
pessoas tentam fazer da vida real uma extensão do seu Instagram: para
muita gente, a necessidade de se mostrar feliz o tempo inteiro
extrapolou os limites das redes sociais. Sua vida real se tornou tão
fake quanto o exibicionismo de fotografias cheias de filtros e
photoshops do Instagram.
Millôr
Fernandes, em uma de suas frases mais inspiradas recomendou desconfiar
de todo idealista que lucra com seu ideal. O idealista bem-sucedido é
primo-irmão do profissional da felicidade e do virtuoso de crachá, que
adoram ostentar sua alegria e sua pretensa superioridade moral sobre os
mortais comuns. Um e outros não estão interessados em praticar o bem; o
“bem” que eles praticam é apenas escada, a finalidade é ficar bem na
fita e levar alguma vantagem, social ou mesmo econômica.
Os
biscoiteiros das redes sociais são assim: proclamam em alto e bom som
como são bons e felizes e tudo de maravilhoso que fazem em busca do
reconhecimento dos seus pares. Como a maioria desses pares também vive
de aparências, a vida se transforma em um incessante comércio de likes,
que só é interrompido quando alguém ousa manifestar uma opinião
diferente: aí o comércio passa a ser de dedos apontados, ódio, censura e
cancelamento.
Nas
palavras de um amigo meu, os imbecis se reuniram em “agremiações de
iguais, reunidos apenas para falar do que os torna iguais entre si e
incompatíveis com tudo que está fora”. Não há sinais de que isso vai
passar. Ao contrário, acho que tende a piorar. Graças ao efeito de
matilha produzido pelas redes sociais, os invejosos, os tolos, os
incompetentes, os despreparados estão sentindo (talvez pela primeira vez
na História da humanidade) o gostinho de ter poder – e farão o que for
necessário para preservar esse poder.
Primeiro
veio a fase de perseguir e esfolar qualquer pessoa minimamente
preparada que ousasse discordar do pensamento hegemônico, porque
qualquer opinião independente vinda de alguém mais preparado é percebida
como ameaça pelos idiotas que ocuparam o poder na mídia e nas
universidades. Quando os “fascistas” são silenciados ou excluídos
socialmente, vem a segunda fase: os virtuosos de crachá começam a se
cancelar uns aos outros diante de qualquer diferença de opinião. Já está
acontecendo. E nada de bom pode vir daí.
Na
célebre “Fábula das Abelhas”, publicada em 1714, Bernard de Mandeville
demonstrou que o egoísmo de cada indivíduo pode resultar em benefícios
coletivos para a sociedade. Mais de três séculos mais tarde, a turma da
lacração transformou o “Vícios privados, benefícios públicos” em
“Virtudes em público, vícios e benefícios privados”. Da ostentação
pública da virtude resultam benefícios privados – e a licença para
praticar os piores vícios.
***
Por
puro esquecimento, acabou ficando de fora do meu último artigo, “Greta
no Senado e outros retratos de nossa época”, a impressionante, corajosa e
heroica manifestação de artistas do bem que não hesitam em colocar as
próprias vidas em risco para combater a ditadura genocida. No dia 7 de
setembro, o grupo “Salvadores Dali” (e "amigues") lançou no Youtube o
clipe com uma versão brasileira da secular canção italiana (que aliás
faz parte da trilha sonora da edificante série espanhola “La Casa de
Papel”, que alça ladrões à condição de heróis e exemplos).
Em
um trabalho classificado como “transgressor”, o grupo canta, com ar
muito sério de quem está realmente disposto a se sacrificar pela
democracia: “Suas mentiras e todo ódio custaram vidas que foram embora
pela sandice e desamor. (...) Darei minha vida para expulsar o ditador”:
É este o tamanho do buraco onde o Brasil se meteu.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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