Só mesmo um político difícil de enquadrar como o primeiro-ministro britânico para rasgar o programa de um partido fundado em 1834. Vilma Gryzinski:
Num
país onde motoristas de caminhão estão ganhando mais do que advogados e
arquitetos (melhor oferta: 53 mil libras por ano, equivalente a mais de
sete vezes em reais, salário generoso para contrabalançar as quebras na
cadeia de abastecimento), não deveria causar estranheza que um chefe de
governo do Partido Conservador, intrinsicamente contra os excessos do
Estado, inclusive fiscais, soltasse um pacotão que aumenta as
contribuições sociais de patrões e empregados.
Fora
as reclamações de conservadores raiz, exasperados com mais uma
manifestação de heterodoxia doutrinária de Boris Johnson, o aumento de
1,25% até que foi recebido com resignação.
Um
dos argumentos: ninguém espera mais que o primeiro-ministro seja fiel a
princípios ou cumpra promessas pétreas, como a de não aumentar
impostos. (“Uma pandemia não constava com programa do partido”,
justificou ele).
O
objetivo, como sempre, é nobre: reforçar o caixa que sustenta os
cuidados domiciliares para idosos incapacitados e ajudar o NHS, o SUS
britânico, a desafogar a demanda por atendimento que aumentou
dramaticamente durante a pandemia por causa do direcionamento de
recursos à Covid-19. Sem a verba extra, a lista de espera chegaria a
treze milhões de pessoas, argumentou Boris.
Glorificado,
erroneamente, como um excelente serviço de saúde pública, o NHS hoje
praticamente reduz as primeiras consultas a contatos por telefone – o
oposto do que um bom atendimento deveria ser.
Ao
todo, o pacotão, o maior desde o fim da Segunda Guerra Mundial, deve
gerar 12 bilhões de libras. O aumento é escalonado, vai de 130 libras a
mais por ano para quem ganha até 20 mil libras, a 1 130 extras no caso
dos salários acima de 100 mil libras. Os dividendos pagos por empresas
aos sócios também terão alíquotas aumentadas.
Os
aposentados que continuam a trabalhar também terão que pagar a
contribuição social pela primeira vez. Um milhão e 300 mil pessoas
continuam a trabalhar depois de atingir os 66 anos, a idade da
aposentadoria.
Pessoas
que precisam de atendimento domiciliar e recebem abaixo de 20 mil
libras por ano, não pagarão pelos cuidados. Na faixa que vai até 100 mil
libras, a cobertura será parcial. Ao todo, ninguém deverá pagar mais do
que 86 mil libras pelos cuidados sociais.
Muito
desse pacote pode ser chamado de “taxa Alzheimer”, ou seja, pretende
reforçar os recursos para atender idosos atingidos por demências da
senilidade.
Não
ficar desamparado justamente quando mais se necessita é uma preocupação
recorrente, principalmente em países avançados com uma grande população
velha. Boris Johnson sabe disso e certamente comemorou a aprovação de
47% da opinião púbica ao pacote, contra 43% desfavoráveis.
O
primeiro-ministro virou uma espécie de profeta descabelado do “novo
conservadorismo” – uma versão com sinal invertido do “novo trabalhismo”,
defendido por Tony Blair na época em que se tornou a estrela da
terceira via, a adaptação de partidos social-democratas e socialistas às
realidades da economia globalizada.
Faz
parte desse novo conservadorismo não ter medo de gastar dinheiro (dos
outros, claro) e abraçar a causa ambiental com entusiasmo. Boris já
reduziu para 2030 o prazo final para o fim dos carros movidos a
combustíveis fósseis. Seu plano para neutralizar as emissões de gás
carbônico vai custar tão caro que os conservadores nem querem falar no
assunto.
Até
na infeliz e malfadada formação de uma superliga europeia de de
futebol, que solaparia a tradição dos clubes locais, ele já interferiu,
ao contrário do que recomendaria o manual conservador.
Ter
jogo de cintura e se adaptar a novas circunstâncias – como uma pandemia
ou uma intrusão alienígena no mundo do futebol – pode ser visto de dois
ângulos opostos: falta de compromisso com princípios que deveriam ser
imutáveis ou capacidade de visão para enfrentar realidades cambiantes.
Em qual das categorias se enquadra Boris Johnson? Provavelmente nas duas.
Em
ambas as hipóteses, merece ser relembrada uma constatação de Benjamin
Disraeli, o formidável primeiro-ministro que foi um dos fundadores do
Partido Conservador, em 1834, sobre as bases do Partido Tory, como até
hoje é conhecido.
Disse Disraeli: “O mundo é governado por personagens muito diferentes do que imaginam aqueles que não estão nos bastidores”.
O
Boris dos bastidores talvez não seja tão diferente do Boris
performático dos compromissos públicos, embora e encenação que faz de um
bufão simpático e dedicado a restaurar o otimismo nacional – tarefa
nada simples num ex-império inevitavelmente amarrado ao peso do passado –
deixe muita gente desconfiada.
Ser um conservador progressista, ou até, livrem-no os céus, algo keynesiano, é até fácil para um personagem assim.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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