Resistir aos impulsos autoritários de Bolsonaro dará à sociedade brasileira mais força contra qualquer nova ameaça aos fundamentos da democracia. O argumento ganha um peso maior se for aceito pelos militares. Fernando Gabeira para O Globo:
Civis
que ocuparam o cargo de ministro da Defesa garantem que as Forças
Armadas não embarcam numa aventura golpista. Eles sabem mais do que eu.
No entanto tenho algumas dúvidas.
Não
são dúvidas turbinadas pelo preconceito ou pelo ressentimento. Como
jornalista, sempre destaquei ações positivas dos militares; no
Congresso, mantive as melhores relações com assessores parlamentares das
Forças Armadas, entre eles o general Villas Bôas.
Os
fatos abalam qualquer certeza. Desde a não punição do general Pazuello
até as recentes notícias sobre ameaças do ministro da Defesa, o curso
dos acontecimentos nos leva à desconfiança. É difícil imaginar como uma
sucessão de pequenas atitudes autoritárias pode conduzir a uma firme
decisão democrática, no dia D e na hora H, como diz Pazuello.
Outro
dia, um general ficou bravo comigo porque critiquei Pazuello por sua
audácia ao assumir um cargo para o qual não tinha a mínima competência.
Mencionei sua obediência cega a Bolsonaro, e o general entendeu minha
crítica como uma tentativa de minar o conceito de disciplina dos
militares. E disse que era capaz de matar ou morrer pela pátria.
Na
verdade, peço muito menos que matar ou morrer: simplesmente pensar.
Bolsonaro não merece uma obediência cega. Ninguém merece. O que está em
jogo é uma noção de dignidade dos militares, discussão importante, pois,
do seu prestígio, depende parcialmente a consistência da defesa
nacional.
O
perigoso esporte de humilhar generais, título do artigo que provocou a
ira dos generais, continua a ser praticado. O general Ramos soube de sua
saída da chefia da Casa Civil pela imprensa e confessou que se sentiu
atropelado por um trem.
O
general Mourão é enviado numa missão a Angola para defender, em nome do
Brasil, a política da Igreja Universal do Reino de Deus. Isso não é
política de Estado, e a tarefa não deveria ser aceita por um general.
Tenho
muita tranquilidade em discutir o conceito de obediência na política.
Não acho que seja uma extensão do conceito de disciplina militar. Nisso,
sempre discordarei dos generais da direita, assim como discordei dos
generais da esquerda nos longos debates sobre o chamado centralismo
democrático.
O
melhor instrumento que a sociedade tem para tratar da questão militar
que aparece volta e meia é precisamente determinar uma meia-volta:
aprovar o projeto que impede militares da ativa de ocupar cargos civis
no governo. Votar logo essa proposta de voto impresso, decidir
democraticamente se o teremos ou não.
Isso
não basta. Concordo com o ex-ministro da Defesa Raul Jungmann: o
Congresso é omisso ao não discutir os grandes temas da defesa nacional. A
omissão dos parlamentares passa aos militares uma sensação de
irresponsabilidade ou mesmo de ignorância em relação à dimensão do tema.
Impede que a variável ambiental tenha a importância estratégica que
merece, atrasa uma solução negociada para o futuro da Amazônia.
A
fragilidade da representação política contribui também para que os
militares tenham uma visão resignada do Congresso. Nos Anos de Chumbo,
seus aliados eram da Arena, partido dos coronéis nordestinos; na eleição
indireta à Presidência, o candidato dos militares era Paulo Maluf.
Não
me espanta que o governo atual tenha se transformado numa associação
entre militares e o Centrão. A escolha ideológica sempre foi mais
importante que uma sempre anunciada recusa à corrupção.
Durante
a Guerra Fria, a ideia de se unir com qualquer um para evitar o
comunismo tinha um poder maior de atração. De lá para cá, a sociedade
brasileira evoluiu, o comunismo fracassou, apesar da sobrevivência
autoritária do PC chinês.
Resistir
aos impulsos autoritários de Bolsonaro dará à sociedade brasileira mais
força contra qualquer nova ameaça aos fundamentos da democracia. O
argumento ganha um peso maior se for aceito pelos militares. Ele é a
base real da conciliação.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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