Há quem sugira que hoje o nome 'comunista' seja apenas uma grife para enfeitar a ditadura de uma elite que só pensa em enriquecer sem escrúpulos. Dagomir Marquezi para a revista Oeste:
O
Partido Comunista Chinês completou neste 1º de julho seu centenário de
existência. Está comemorando no melhor estilo stalinista. Em outros
aspectos, nem lembra suas origens revolucionárias. Existe até quem
sugira que o nome “comunista” seria apenas uma grife para enfeitar a
ditadura de uma elite que só pensa em enriquecer sem escrúpulos. E há
também os que consideram que essa é justamente a perfeita definição de
comunismo.
A
raiz do PCC, segundo a Enciclopédia Britânica, é o Movimento da Nova
Cultura. Reunia, em 1915, jovens que — acredite se quiser — exaltavam as
ideias do Ocidente, especialmente a ciência e a democracia. Em 1919, os
estudantes se revoltaram contra o domínio japonês e ganharam o apoio da
população. Esse apelo pela modernização da China se espalhou, gerando o
Partido Nacionalista, comandado por Chiang Kai-chek.
Chiang Kai-check |
Mas
uma parte dos seguidores do Nova Cultura se entusiasmou com as ideias
de Karl Marx e com o sucesso da Revolução Russa de 1917. E fundou o
Partido Comunista Chinês em 1921, com militantes como Mao Tsé-tung e Liu
Chao-chi. Eram apenas 50 militantes reunidos no número 106 da Rua
Wantz, em Xangai, observados por um representante da URSS. Seguindo o
modelo soviético, eles organizavam sindicatos nas grandes cidades. Em
1924, havia clima para que nacionalistas e comunistas se unissem numa
aliança de sucesso. Três anos depois, começaram uma guerra civil que
dura até hoje.
Mao
Tsé-tung e alguns de seus camaradas perceberam que não fazia sentido
concentrar-se em sindicatos urbanos quando a China era um país
eminentemente rural. Mao se dirigiu aos camponeses e liderou a célebre
Longa Marcha (1934-1935). Passou a ser o líder absoluto do Partido
Comunista.
A Longa Marcha |
A
partir de 1936, nacionalistas e comunistas deram um tempo na guerra
entre si para lutar (separadamente) contra os japoneses. Foi o período
de crescimento do PCC, que ainda seguia uma linha de “frente ampla”,
unindo camponeses, operários, classe média e pequenos empresários. Em
1946, a guerra civil recomeçou e três anos depois os nacionalistas foram
expulsos para a Ilha de Taiwan. Estava criada a República Popular da
China. E Mao Tsé-tung, seu líder supremo, foi assumindo aos poucos o
vulto de semideus.
Ao
ser acusado de ditador, segundo o jornal The Epoch Times, Mao
respondeu: “Meus caros senhores, vocês estão certos, é isso que somos”.
Segundo o Grande Timoneiro (um de seus épicos apelidos), era necessário
ser ditatorial contra os “cães do imperialismo, os latifundiários e a
burocracia burguesa”. Foi sob o domínio de Mao Tsé-tung que o Tibete foi
invadido, em 1950, e teve sua riquíssima cultura parcialmente destruída
por soldados chineses.
Aos
poucos, a China foi se distanciando da influência da União Soviética. O
camarada Mao lançou um programa de coletivização forçada do campo, com
nome pomposo: o Grande Salto para a Frente (1958-1960). Como senhores
feudais, os comunistas exigiam cotas absurdamente altas das colheitas
para ser entregues ao Estado.
O Grande Salto para a Frente. |
“O
que se seguiu”, escreveu Nicole Hao para o Epoch Times, “foi o pior
desastre não natural da História: a Grande Fome, durante a qual dezenas
de milhões morreram, de 1959 a 1961. Camponeses famintos comiam animais
selvagens, grama, casca de árvore, e até argila. A fome extrema levou
muitos para o canibalismo.” Carne humana era vendida no mercado.
Crianças eram trocadas de família para que os pais não comessem os
próprios filhos. Segundo o escritor holandês Frank Dikköter, autor do
livro A Grande Fome de Mao, 45 milhões de chineses morreram durante o
Grande Salto para a Frente.
A Grande Fome |
Em
1966, o poder absoluto de Mao se transformou em loucura, com a infame
Revolução Cultural. Seu Livro Vermelho tornou-se uma espécie de bíblia
comunista, com frases como “devemos apoiar tudo o que o inimigo combate e
combater tudo o que o inimigo apoia”.
Foram
dez anos de caos, terror, tortura, execuções e destruição de relíquias,
templos, locais históricos, estátuas e livros. Nessa época ainda não
havia o conceito de cancelamento. “Não foi tanto o número de mortes que
caracterizou a Revolução Cultural, mas o trauma”, segundo Frank
Dikköter. “Foi a maneira como as pessoas eram jogadas umas contra as
outras, obrigadas a denunciar membros da própria família, colegas,
amigos. Foi a perda de confiança, de amizade, de fé em outros seres
humanos.”
A Revolução Cultural |
A
era de loucura maoista acabou em 1976. Com a morte de Mao, a figura
central do PCC passa a ser Deng Xiaoping. Ele realiza um programa de
modernização econômica que aproxima a China do capitalismo, sem deixar
de ser uma ditadura de partido único. É de Deng Xiaoping a frase
clássica do pragmatismo: “Não importa a cor do gato, desde que cace
ratos”. Ficar rico voltou a ser motivo de orgulho.
Deng Xiaoping |
Com
um pouco mais de liberdade econômica, os chineses começaram a prosperar
e almejar também liberdade política e cultural. A perspectiva de uma
China democrática seguidora do livre mercado apareceu como miragem no
horizonte.
Mas
o Partido Comunista Chinês mostrou sua natureza em 15 de abril de 1989,
quando cercou com tanques e metralhou uma multidão de manifestantes que
pediam pacificamente liberdade na Praça da Paz Celestial, em Pequim. O
massacre matou “centenas” ou “milhares” de manifestantes — a ditadura
nunca permitiu uma contagem independente. Alguns médicos falaram em
“rios de sangue correndo em portas de hospitais”.
O Massacre da Praça da Paz Celestial |
O
show de violência revelou que o movimento por democracia havia
assustado profundamente os altos escalões do PCC. Eles se apavoraram com
a perspectiva de perder o poder. Afinal, no mesmo ano o muro de Berlim
foi derrubado. A União Soviética acabou em 1991. Nenhuma contestação ao
poder absoluto dos comunistas chineses seria permitida.
Matéria
de Alice Su para o jornal Los Angeles Times conta que a geração nascida
a partir do massacre é conhecida como “jiulinghou”. É a geração que
recebeu a “educação patriótica” controlada pelo PCC. O massacre da Praça
da Paz Celestial, a Grande Fome e todos os traumas provocados pelo
regime nos anos anteriores foram apagados da mídia oficial e dos livros
de História. A narrativa estava basicamente sob controle, num país onde o
acesso à internet é totalmente vigiado pelo aparelho repressivo.
Essa
tendência ao fechamento cristalizou-se em 2012, com a escolha de Xi
Jinping como dirigente máximo. Xi misturou o pragmatismo de Deng com o
culto à personalidade de Mao. Ele quer ser lembrado como um líder que
foi além de Mao Tsé-tung, “retomando” a república de Taiwan, se
necessário pela força.
O
regime hoje pratica a fórmula mais clássica de imperialismo. Injeta
grandes empréstimos em países africanos para que se tornem devedores
obedientes. Suborna políticos e empresas de mídia. Usa o gigantesco
mercado consumidor como barganha para estabelecer uma forma inédita de
censura global. Quem quiser ter acesso ao dinheiro chinês não poderá
fazer nada que o regime considere ofensivo.
Em
2018, por exemplo, o governo chinês proibiu a exibição de um filme de
animação estrelado pelo ursinho Puff (Winnie the Pooh, no original). A
razão para isso? Em 2013, Xi se reuniu com o então presidente Barack
Obama e uma foto o comparou com o personagem de histórias infantis. Os
chineses começaram a se referir com senso de humor ao ditador como
“ursinho Puff”. Foi o suficiente.
Com
a aproximação do centenário do PCC, Xi Jinping ordenou que a história
oficial do partido fosse reeditada de forma a eliminar memórias
incômodas. A sangrenta Revolução Cultural agora é elogiada como medida
anticorrupção. “Todos os cinemas do país foram obrigados a exibir pelo
menos dois filmes de propaganda nacionalista a cada semana”, relatou
Alice Su em sua matéria. “Escolas, hospitais, associações de advogados,
templos budistas e taoistas promoveram competições de canto ‘vermelho’,
declamação de poesia patriótica e sessões de estudo político.” Parece
Moscou em 1930, mas é a China em 2021.
Xi
conseguiu o fim da limitação de seu cargo a dois mandatos de cinco
anos. Pode, se mantiver o país funcionando, mandar na China pelo resto
da vida. Cai Xia, uma teórica do partido que rompeu com o regime e se
exilou, chamou-o de “chefe de máfia” e o partido de “zumbi político”.
Num documento para o Hoover Institute, a professora garantiu que o
Partido Comunista Chinês é “muito mais frágil do que os norte-americanos
pensam”.
“O
partido permeia cada aspecto da vida”, descreve o professor e
dissidente Wu Qiang. “Não existem vozes diferentes dentro ou fora do
partido. Como resultado, não existem avaliações e correções. Pequenos
erros podem evoluir para erros enormes e pôr o partido em perigo.” Para
todos os efeitos, o domínio do PCC é sólido e absoluto. “Governo,
militares, sociedade, educação, norte, sul, leste, oeste, centro, o
partido lidera tudo”, resumiu Xi num marcante discurso de 2017.
O
PCC tem o que comemorar? Sem dúvida. A China virou uma potência
econômica global com pretensões de ser o país mais poderoso em poucas
décadas. Está preparando uma nova estação espacial, pousou uma nave em
Marte e vai montar uma base na Lua. Construiu alguns dos mais avançados
computadores do mundo. Deu um show de engenharia criando uma grande rede
de trens de alta velocidade em tempo recorde. Suas Forças Armadas estão
em acelerado processo de modernização.
Essas
conquistas acabam sendo neutralizadas pela brutalidade do regime e pela
ação extremamente agressiva de seus embaixadores. Somem-se a tudo isso o
fato de que nenhum outro país jamais destruiu o meio ambiente como a
China e as suspeitas sobre a origem da covid-19, e temos um desastre
permanente de relações públicas.
Como
parte da comemoração dos cem anos, Xi Jinping inaugurou o novo museu
dedicado ao PCC, hoje com 92 milhões de membros. Lá ele realizou o
juramento que passa do território da política para o de uma seita: “Eu
serei leal ao partido, trabalharei duro e lutarei pelo comunismo por
toda a minha vida. Estou pronto o tempo todo para me sacrificar pelo
partido e pelo povo e nunca trairei o partido”.
Novas
gerações se filiam ao PCC, não por fervor ideológico, mas porque essa é
a maneira de se dar bem na vida, com padrinhos influentes, salários
generosos, apoio estatal e aposentadorias mais rápidas. Sem a
carteirinha, ninguém se dá bem. E para ter a carteirinha o cidadão
precisa ser ficha-limpa no partido. E a máquina de controle e delação
hoje ocupa cada pequena célula da vida nacional.
Durante
uma hora de discurso no dia da comemoração do centenário do PCC, Xi
Jinping usou imagens violentas como “esmagar a cabeça” de possíveis
inimigos, e reafirmou a decisão de retomar Taiwan. Mas um dos trechos
mais marcantes do discurso valeu mais pelo que Xi não disse. “Os
chineses nunca agrediram, oprimiram ou escravizaram povos de outros
países”, declarou o dirigente. Ficou subentendido que não tem problema
fazer essas coisas com o próprio povo.
Os
primeiros cem anos do Partido Comunista Chinês servem para uma reflexão
sobre o que os brasileiros querem para os próximos cem. O “modelo
chinês” de controle absoluto da sociedade tem inúmeros fãs no Brasil. Um
deles é o ex-presidente Luiz Inácio da Silva, que em entrevista, no
último dia 26, elogiou a “organização política” do país. Declarou também
que a “resposta rápida” à pandemia de covid-19 na China só foi possível
porque lá existe um “partido político forte”.
Lula
não é o único admirador brasileiro da ditadura chinesa, claro. Hoje
eles não estão mais limitados aos partidos brasileiros de extrema
esquerda. Social-democratas e até “liberais” de fachada não admitem
críticas ao regime para supostamente “não prejudicar nossas exportações”
ou “garantir a chegada de vacinas”. Para boa parte da mídia, a China é
intocável.
Aparentemente
estamos nos encaminhando para uma encruzilhada. Ou optamos pela
liberdade. Ou preferimos o modelo de “partido político forte” elogiado
por Lula.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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