Nada como mexer em livros velhos, encontrar as marcas de uma leitura anterior e descobrir que Shakespeare falou, sim, sobre o Brasil contemporâneo. Via Gazeta, a crônica de Paulo Polzonoff:
Estava
mexendo em uns livros velhos, aspirando uns ácaros pré-históricos e
chafurdando naquela nostalgiazinha nada saudável, quando me deparei com
uma edição de “O Rei Lear”, de Shakespeare, em tradução do velho, bom e
saudoso Millôr Fernandes. O livro está todo rabiscado (à caneta, porque
sou rebelde) e cheio de anotações às margens. Não entendo minha própria
letra. Aqui e ali, tampouco entendo por que sublinhei essa ou aquela
passagem.
Logo
na segunda cena do primeiro ato, conversam Gloucester e Edmundo sobre
os tempos pouco auspiciosos em que vivem. Diz Gloucester:
“Esses
últimos eclipses do sol e da lua nada de bom nos anunciam; embora as
leis da natureza possam explicá-los de diversos modos, a própria
natureza é castigada pelos seus efeitos. O amor esfria, a amizade se
rompe, os irmãos se dividem. Na cidade, revoltas, nos campos, discórdia;
nos palácios, traição; e se arrebentam os laços entre pais e filhos.
Esse vilão que criei caiu nessa maldição; é um filho contra o pai. O rei
desvia-se das leis da natureza: e o pai contra a cria. Nós vimos o
melhor de nosso tempo: perfídias, traições, imposturas e toda espécie de
agitações funestas vão nos acompanhar sem descanso até a tumba. Revela
esse canalha, Edmundo; não perderás por isso. Vai com cuidado. E Kent,
nobre e leal, foi exilado. Seu crime foi a honestidade. É estranho”.
A
peça foi escrita nos primeiros anos do século XVII. O que significa
que, ao ler esse trecho marcado com dez pontos de exclamação à margem,
minha nostalgiazinha nada saudável leva um tapa na cara. Tapa
necessário, diga-se passagem. Porque cair na armadilha reacionária do
“tudo era melhor antes” só não é pior do que se ver preso às amarras do
“eu vivo tempos inéditos”. Reis vêm e vão, guerras são declaradas,
acordos de paz são firmados. E a condição humana continua na mesma toada
trágica, com um ou outro dia de comédia. E, nós, escravos de uma
realidade incontrolável, ainda tentando contorná-la procurando culpados
para mazelas que são da nossa própria lavra.
A
resposta de Edmundo aos lamentos de Gloucester tem como ouvinte apenas o
leitor/espectador. Antes que Edgar entre em cena, diz Edmundo ao que
imagino ter sido uma plateia barulhenta e fedida no Globe Theatre:
“Eis
a sublime estupidez do mundo; quando nossa fortuna está abalada –
muitas vezes pelo excesso de nossos próprios atos – culpamos o sol, a
lua e as estrelas pelos nossos desastres, como se fôssemos canalhas por
necessidade, idiotas por influência celeste; escroques, ladrões e
traidores por comando do zodíaco; bêbados, mentirosos e adúlteros por
força da obediência a determinações dos planetas; como se toda a
perversidade que há em nós fosse pura instigação divina. É a admirável
desculpa do homem devasso – responsabiliza uma estrela por sua
devassidão. Meu pai se entendeu com minha mãe sob a Cauda do Dragão e
vim ao mundo sob a Ursa Maior; portanto devo ser lascivo e perverso.
Bah! [Por algum motivo, o Edmundo de Millôr Fernandes parece ser
gaúcho]. Eu seria o que sou, mesmo que a estrela mais virginal do
firmamento tivesse iluminado a minha bastardia (...)”.
Pelo
que se vê, Shakespeare não era muito fã da astrologia. Mas ficar nessa
interpretação seria comprar briga com leitores de horóscopo. Não vale a
pena. Melhor entender que a busca humana por desculpas por seus atos de
vilania é estratégia velha e nada tem a ver com a “guerra cultural” que
se trava hoje. Nisso, aliás, eu e o Paulo de anos atrás ainda
concordamos. É o que concluo depois de, com alguma dificuldade, ler o
bilhete que cai de dentro do livro, no qual escrevi uma versão para essa
fala de Edmundo aplicada ao Brasil atual.
“Eis
a sublime estupidez do mundo: quando nossa fortuna está abalada –
muitas vezes pelos excessos de nossos próprios atos – culpamos
Bolsonaro, Lula e até o Papa pelos nossos desastres; como se fôssemos
canalhas por necessidade, idiotas por influência econômica; escroques,
ladrões e traidores por comando de Marx ou Mises; bêbados, mentirosos e
adúlteros por forçada obediência a determinações progressistas ou
conservadoras; como se toda perversidade que há em nós fosse pura
instigação política. É a admirável desculpa do homem devasso –
responsabiliza o Estado, a sociedade, a democracia e o que mais tiver
diante de si por sua devassidão. Meu pai acredita que perdeu o emprego
porque era negro e vim ao mundo sob o governo de Lula; portanto devo ser
antirracista e comunista. Bah! Eu seria o que sou, mesmo que o líder
mais impoluto tivesse legitimado a minha bastardia (...)”.
Há
dias assim (e, se eles se prolongarem e virarem meses e anos, procure
um médico): você olha em volta e só é capaz de enxergar “perfídias,
traições, imposturas e toda espécie de agitações funestas que vão nos
acompanhar sem descanso até a tumba”. E sai logo encontrando no
firmamento ou nas páginas de jornal culpados para o fogo e o sangue que o
cercam. Para esses momentos, Shakespeare oferece, na voz do Duque de
Albany e algumas páginas mais tarde, umas poucas palavras de consolo -
também com a marcação de um leitor que é o mesmo, mas outro:
“Não sei se seus olhos veem bem ao redor;
É comum perder-se o bom por querer o melhor”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário