Os bandeirantes escravizaram, sim, mas não só por isso devem ser julgados. Artigo do criminalista J. Roberto Batochio para o Estadão:
Somos
obrigados a conquistar por polegadas a terra que Vossa Alteza nos fez
mercê por léguas" (Carta de Duarte Coelho, donatário de Pernambuco, ao
rei dom João III, em 1546).
A
épica empreitada da colonização do Brasil inscreve-se como uma das
heroicas, árduas e trágicas páginas da grande aventura humana para
descobrir o que existia onde acabavam os mares, desta vez em direção às
terras que os mal chamados índios já ocupavam e viriam a ser conhecidas
como Novo Mundo. Homens de seu tempo, como todos os homens, trouxeram os
usos e costumes dos colonizadores, que não podem ser avaliados pela
perspectiva do retrovisor da História, que os julga a partir de valores
mais acordes com a contemporaneidade do que com a conformação social da
antiguidade.
O
equívoco de revisar o passado com a escala axiológica do presente
avoluma-se como desvio histórico a confundir as sucessivas gerações, a
exemplo do nefasto espetáculo pirotécnico recém-encenado no bairro
paulistano de Santo Amaro. A turba ateou fogo à estátua do bandeirante
Borba Gato, estigmatizando-o como “escravocrata”, “assassino”,
“bugreiro”, “genocida”. Para início e fim de conversa, não há
comprovação documental de que o paulista Manuel Borba Gato (1628-1718)
tenha sido um bugreiro sanguinário – ainda que tenha participado da
bandeira de apresamento liderada por seu sogro, Fernão Dias Pais, o
Caçador de Esmeraldas, de fato um escravizador de índios.
O
que distingue Borba Gato na História do Brasil é sua participação na
exploração do imenso continente desconhecido de que falou Duarte Coelho
e, sobretudo, o protagonismo no ciclo do ouro, que devolveu à colônia a
prosperidade que se ensaiara no então já superado ciclo do açúcar.
Período de enorme expansão econômica, o da mineração propiciou
crescimento da população, criação de mercado interno, expansão da
pecuária e da agricultura, construção de malhas de transporte e de
circulação de mercadorias a partir do Paraná e São Paulo. Como o
posterior ciclo do café, o do ouro engendrou, segundo Celso Furtado em
Formação Econômica do Brasil, “condições favoráveis ao desenvolvimento
endógeno da colônia”.
Com
o espírito desbravador dos bandeirantes, Borba Gato descobriu ouro,
fundou vilas, como a de Sabará, e defendeu a exploração das minas em
benefício dos brasileiros, desentendendo-se com o autoritário
administrador castelhano Rodrigo de Castelo Branco, de cuja morte acabou
sendo acusado. A partir daí, vagou como fugitivo durante 17 anos pelos
sertões, só recebendo o perdão real em 1700. Anistiado, ocupou cargos
públicos, a começar pela superintendência dos negócios da mineração.
Nesse posto continuou a defender os interesses dos brasileiros contra os
reinóis, a ponto de expulsar o grande contrabandista lusitano de ouro
Manuel Nunes Viana, episódio que deflagrou a Guerra dos Emboabas,
epíteto que os “paulistas” atribuíam aos portugueses que não paravam de
acorrer às minas.
Borba
Gato fez parte da linhagem de destemidos empreendedores que viriam a
ser os bandeirantes construtores do Brasil. Gigantes como Antônio Raposo
Tavares e sua lendária Bandeira de Limites, um percurso de 10 mil
quilômetros do Tietê ao Amazonas. A maior parte do território percorrido
pertencia à Espanha, pelo Tratado de Tordesilhas, mas depois foi
incorporado ao Brasil pelo Tratado de Madri, em 1750. Um feito
extraordinário que o historiador português Jaime Cortesão, em Raposo
Tavares e a Formação Territorial do Brasil, chamou de “a maior e mais
épica façanha não só do bandeirismo brasileiro, mas de todos os
pioneiros do Novo Mundo.” Para um oriundi, é motivo de orgulho divisar
no Parque do Ibirapuera o Monumento às Bandeiras, onde o italiano de
Farnese Vitor Brecheret cinzelou em granito o caldeirão étnico inicial
do povo brasileiro, formado por brancos europeus, negros africanos,
índios e mamelucos.
Os
bandeirantes escravizaram e dizimaram índios, sim, os primeiros
mártires de uma colonização sangrenta, mas não só por isso devem ser
julgados. Sua dadivosa obra foi reconhecida por historiadores da
estatura de Afonso Taunay, Tito Lívio Ferreira e Viana Moog, e decantada
pela sensibilidade poética de Oswald de Andrade e Vinicius de Moraes.
Não eram santos, porém convém lembrar que santos também se entregaram a
essa nefanda apropriação do ser humano usual na época, pois o posterior
São José de Anchieta e seu superior Manuel da Nóbrega, ao mesmo tempo
que protegiam os índios, tinham escravos negros. A seguir o que fizeram
com Borba Gato, os revisionistas de retrovisor também poderiam mirar
Tiradentes, Zumbi e o Quilombo de Palmares, onde houve escravidão de
negros. Antes de se converter à abolição por influência meramente
religiosa, a princesa Isabel também teve escravos, e há muitos outros
exemplos cultuados de proprietários de gente. Se a revisão de hoje
alveja os escravocratas, eles, e até negros que negociaram negros, como
Zé Alfaiate, o maior traficante do Brasil, estão na linha da artilharia
iconoclasta.
CRIMINALISTA, FOI PRESIDENTE DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL E DEPUTADO FEDERAL
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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